Grande entrevista de José Luís Arnaut no momento em que cessa funções como presidente da Mesa da Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Futebol
José Luís Arnaut, 61 anos, advogado, atual presidente do Conselho de Administração da ANA, Aeroportos, cessa hoje funções, que vem a exercer desde 2011, como presidente da Mesa da Assembleia Geral (AG) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), tendo antes assumido funções idênticas na Liga de Clubes, presidida por Fernando Gomes, com quem manteve contacto institucional direto durante década e meia. Num momento marcante não só para o futebol nacional como para a nossa sociedade em geral, o Euro-2004, José Luís Arnaut, à altura ministro da Presidência no Governo de Durão Barroso, teve a tutela do Desporto e coube-lhe coordenar, na parte portuguesa, a construção do edifício do primeiro Campeonato da Europa de Futebol do século XXI. Na primeira entrevista que concede em doze anos de presidência da AG da FPF, Arnaut fala como testemunha privilegiada do salto quântico dado pela FPF na liderança de Fernando Gomes, que gostava de ver como presidente do Comité Olímpico de Portugal
— A FIFA passou por uma grande transformação, pelas piores razões, na sequência do FIFAgate, pelas práticas de corrupção em alta escala, mas ao mesmo tempo fez emergir a figura de Gianni Infantino, que representará uma nova mentalidade. Como é que carateriza Infantino, já que sei que o conhece muito bem?
— Temos uma relação muito próxima. Aliás, tenho que fazer este disclaimer, porque qualquer juízo que eu faça sobre Infantino, é um juízo que faço sobre alguém de quem sou amigo pessoal e com quem convivo com alguma regularidade. Trata-se de uma pessoa com uma enorme capacidade de trabalho, um jurista de grande formação, uma pessoa de uma integridade e de uma seriedade à prova de bala. Só isso é que lhe permitiu impor-se, quer quando esteve na UEFA, como secretário-geral, e depois, quando se candidatou à presidência da FIFA. Como sabe, nós estávamos muito empenhados na candidatura dele. Fernando Gomes e a estrutura da FPF, eu incluído, apoiámos de maneira muito visível a candidatura de Infantino à FIFA, aliás a FPF foi a Federação que mais nela trabalhou e acabou por funcionar muito bem. Era preciso limpar a FIFA daquela podridão que existia. Foi um trabalho difícil, Infantino teve muitas dificuldades de que fui testemunha, mas acabou por limpar aquela estrutura corrupta. A FIFA hoje vai onde é preciso, tem sedes em Paris e agora também em Miami para preparar o Mundial-2026, antes esteve em Doha e há de vir para Portugal, Espanha e Marrocos. Infantino fala português fluentemente, viveu cá e trabalhámos muito juntos, e a mudança que protagonizou na FIFA foi no sentido da transparência, acabaram as decisões tomadas à porta fechada, e as candidaturas aos Mundiais são votadas em plenário, por voto secreto.
— É minha convicção que os norte-americanos, quando perderam a candidatura para o Qatar da forma que perderam, zangaram-se, meteram o FBI e o IRS em campo, e resolveram a questão...
— Há muitas interpretações, não participei, não fui ator, mas o que aconteceu, ainda bem que aconteceu, porque a podridão que o Blatter e aquela camarilha toda estavam a levar à FIFA, tinha de acabar mal, sentia-se que ia acabar mal. Aquilo era impensável, o Blatter considerava-se um Chefe de Estado, e exigia ser tratado como tal, tinha uma entourage inqualificável, a filha tinha direitos, era insustentável. Hoje em dia existem processos concorrenciais, ganham uns, perdem outros, não há empresas cruzadas, e nunca houve escândalos de direitos televisivos. O futebol também tem as suas virtudes, e é preciso que as pessoas que não prestam sejam afastadas.
Os desafios de 2030
— A organização do Mundial de 2030 fica intimamente ligada a Fernando Gomes, e haverá um caderno de encargos que Portugal vai ter de cumprir. Estaremos preparados do ponto de vista do hospitalar, hoteleiro, rodoviário, ferroviário e aeroportuário?
— Vamos ver, Fernando Gomes foi buscar para o ajudar na preparação de tudo isso alguém que teve uma experiência única na estruturação do Euro-2004, e estou a falar do engenheiro António Laranjo. É um selo de garantia, até para a FIFA, porque Infantino trabalhou bastante com ele.
— António Laranjo tem um perfil super discreto...
— Sabe, a discrição tem sido uma política de todos… repare, esta é a primeira entrevista que dou em 12 anos, desde que estou na FPF, porque vejo a função como um serviço público, e não como um meio de promoção fácil. Agora, na hora da despedida, creio que já posso falar de Fernando Gomes, que é particularmente discreta, por sinal. Aliás, estes lugares não são para o exercício do ego e da promoção pessoal, e quem o quis fazer também deu-se lá mal e saiu.
— E quanto ao caderno de encargos para o Mundial de 2030?
— Temos infraestruturas, vai ter de ser feita alguma modernização aqui e ali o que também é bom porque alguns espaços estão a precisar.
— Do ponto de vista da hotelaria Portugal tem sabido responder. Mas não temos défice na parte ferroviária?
— Sim, temos défice na parte ferroviária. Mas como só haverá jogos em Lisboa e no Porto e, embora o comboio não seja tão rápido como gostaríamos que fosse, não haverá falta de transporte. E também há a rodovia, mas devemos esperar por saber quais as seleções que vão visitar-nos. Do ponto de vista aeronáutico, não queria muito entrar em detalhes, trata-se de uma preocupação que a FPF tem manifestado ao Governo, que está atento à criação de mecanismos e soluções que tenham em conta a realidade existente. Mas vai depender muito de quem vier jogar cá.
— Estamos a falar de uma competição com 48 seleções...
— É preciso esperar para ver qual é o tipo de tráfego que vem e como é que vai funcionar, como é que vai ser com os charters... quando se souber, vai trabalhar-se no sentido de encontrar soluções. A infraestrutura atual do Porto responde bem, o aeroporto tem uma capacidade enorme e não tem qualquer problema. A solução de Montijo, defendida por Pedro Nuno Santos, foi pensada também para ser uma resposta para o Mundial de 2030. Não havendo essa infraestrutura há que trabalhar e encontrar soluções. Não haverá problemas nessa matéria.
— Mas é uma desvantagem logística...
— Que não é insuperável. Há boa vontade do Governo, há boa vontade da infraestrutura aeroportuária, e vamos encontrar soluções que poderão não ser as ideais, mas são as possíveis. Não vai haver gente a queixar-se de não poder vir a Portugal.
— Vou aproveitar aqui a sua presença para uma matéria da qual temos falado mas não se reporta diretamente ao Desporto. Tenho à minha frente o presidente da ANA, a quem gostaria de perguntar se tem alguma explicação para tantas décadas de discussão sobre o novo aeroporto?
— É um assunto resolvido. Não vou falar hoje nessa qualidade. Está resolvido, é um caminho, estamos a trabalhar numa nova infraestrutura, e não é nessa qualidade que aqui estou hoje.
Grande entrevista de José Luís Arnaut a A BOLA no momento em que deixa o cargo de presidente da Mesa da Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Futebol
Portugal e o futebol
— O que representa o futebol para o povo português, nomeadamente a Seleção Nacional?
— O futebol é muito mais que um jogo. Tem uma vertente económica, uma dimensão social e é uma realidade desportiva. Estes são os três pilares em que assenta e entre eles tem de haver equilíbrio. É preciso que a vertente económica não se sobreponha à questão desportiva e que esta não viva fora da realidade económica. Hoje a FPF tem 239 mil praticantes, é um fator de congregação social, de convívio e de atividade para pessoas das mais diversas idades. E tem também clubismo, que por vezes acarreta alguma violência desnecessária e atritos completamente gratuitos. Mas também nos dá a Seleção Nacional, que representa um momento de comunhão e unidade, independentemente de clubes, raças, estratos sociais, religiões, idades ou culturas. Trata-se de uma coisa única, e é minha convicção que o Euro-2004 impulsionou e cimentou esta circunstância. E a vitória no Euro-2016 fez o resto.
— Mas a lei-Bosman, ao permitir a saída dos nossos melhores jogadores para o estrangeiro, retirou a carga negativa que a clubite colocava sobre a Seleção, e criou uma nova dinâmica...
— Uma das coisas que trabalhámos no European Sports Review (ESR)foi a lei das transferências, que hoje é muito mais transparente e eficaz, na medida em que cria alguma estabilidade e impede situações desconexas com a realidade. Quando a Europa se alargou ao Báltico e a Leste acolhemos uma série de países que não tinham legislação sobre violência no desporto, doping ou transferências. Foi então que, durante as presidências inglesa e sueca presidi ao ESR que estabeleceu as bases do modelo europeu de Desporto. Os ingleses deram-me as melhores condições, colocando a trabalhar comigo especialistas de excelência, um dos quais o Gianni Infantino. Mas voltando às Seleções Nacionais, e vimo-lo recentemente no andebol ou no râguebi, têm a atração da união, são catalisadores fundamentais.
— Tivemos aqui em A BOLA, recentemente, primeiro Pedro Duarte, ministro dos Assuntos Parlamentares com a tutela do Desporto e depois o primeiro-ministro, Luís Montenegro, que confirmaram que estávamos perante uma alteração de paradigma, porque o Desporto tinha deixado de ser uma despesa e passara à condição de investimento. Concorda com esta visão?
— Esse é o caminho certo. Mas recuemos aos anos 90, quando o professor Cavaco Silva criou, através do hoje ministro Castro Almeida, à altura secretário de Estado do Desporto, com os primeiros fundos europeus, uma série de infraestruturas desportivas por todo o País, que as autarquias mantiveram e até aumentaram. Depois, seguiram-se tempos em que o Desporto não foi visto como prioridade e deixaram-no a correr por si próprio, esquecendo que quanto mais atividade desportiva houver, menos se gasta na Saúde. Esta mudança de paradigma, como notou, é uma das traves-mestras da política de Luís Montenegro, e trata-se de uma tendência europeia irreversível. O Desporto é uma forma de atividade social, fundamental para a saúde das pessoas. Mas devemos ter consciência de que ainda há muito por fazer e que há uma coisa que não está bem feita: especialmente nas áreas metropolitanas, também é preciso chamar para a atividade desportiva a nova imigração, para que possam participar em projetos-piloto em algumas freguesias. O Desporto é integração, saúde e alegria, mudou-se o paradigma e há que continuar. Tenho pena que o Jamor não esteja aproveitado, e lembro-me de que quando fui ministro tinha um projeto que acabou por não se concretizar. Era caro? Era. Mas o Jamor seria hoje uma infraestrutura fantástica.
— Chega ao fim o seu percurso na FPF. Quais são os seus planos desportivos para o futuro?
— Espero que o ato eleitoral de dia 14 decorra com grande elevação e sem atritos. Por mim, continuarei atento ao fenómeno desportivo e seguirei com muita atenção o que se vai passar no nosso País no Campeonato do Mundo de 2030.
José Luís Arnaut concede primeira entrevista como presidente da Mesa da Assembleia Geral da FPF, no dia em que abandona o lugar, que ocupa desde novembro de 2011. Um olhar sobre o consulado de Fernando Gomes de alguém que sempre fugiu ao protagonismo...