Entrevista A BOLA «Jorge Jesus foi um deus no Flamengo, gostava de o ver na seleção do Brasil»
José Boto analisa o legado deixado pelo treinador português no clube que agora dirige
- O legado de Jesus ainda é notório no Flamengo?
- É, é. Até porque sou português, não é? E também trabalhei com ele no Benfica. Mas o Jesus foi realmente um fenómeno aqui. No curto período que esteve, diria que foi quase um Deus. Pelo que ele ganhou e pela forma como o fez. Foi um fenómeno de popularidade, das pessoas gostarem muito, mesmo muito dele. E, na minha perspetiva, isso tem a ver, como é óbvio, com os resultados que ele conseguiu. Um futebol também atrativo. Aqui no Flamengo não basta ganhar, é preciso ganhar, dominar e ter um futebol atrativo. Ele uniu essas coisas, e depois há também a personagem que todos conhecemos, aquilo que é o Jorge Jesus, a sua forma de ser. Ao contrário do que muitas vezes acontecia em Portugal, onde algumas pessoas tinham reticências quanto ao seu estilo, aqui essa forma de estar foi valorizada pelos adeptos. As pessoas viam-no como alguém diferente, com uma maneira particular de se expressar e de atuar. Ele realmente deixou uma marca e tem um reconhecimento aqui que não tem, por exemplo, em Portugal.
- Tendo em conta que Filipe Luís disse que Jesus e Simeone foram os treinadores que mais o marcaram, vocês já chegaram a ter uma conversa entre os três?
- Sim, até em Portugal, quando o Filipe esteve comigo, fizemos uma videochamada para o Jorge Jesus e passámos um bom tempo a conversar.
- Gostava de o ver como selecionador do Brasil?
- Gostava. Não sou brasileiro, não tenho esse sentimento, mas nós, portugueses, já tivemos e temos treinadores estrangeiros na seleção. Acho que, se tiver que ser um treinador estrangeiro, ele precisa ser um nome incontestável, como um Ancelotti, um Guardiola ou então o próprio Jesus. Isso é o meu feeling, sem qualquer tipo de certeza.
- Criou-se uma tendência nova no Brasil: sempre que é preciso contratar um treinador, a prioridade é um português. Nota essa mudança de mentalidade?
- Há coisas que são feitas de uma forma estruturada e pensada e há outra coisa que se faz por moda. Assim como eu não penso que todos os treinadores brasileiros são maus, também não penso que todos os treinadores portugueses são bons. Aquilo que se passou foi que, com o sucesso de Jorge Jesus, acho que se criou uma moda de acreditar que todos os treinadores portugueses são como ele, e isso não é verdade. É óbvio que a minha perceção é que o treinador português é mais bem preparado do que o treinador brasileiro, ou pelo menos do treinador brasileiro que normalmente roda entre as equipas da primeira liga aqui. Mas não é só a questão dos portugueses, se calhar mais de 50% são treinadores estrangeiros, porque há muitos argentinos também. Aqui ouço dizer que a escola de treinadores e a formação de treinadores na Argentina está um pouco mais evoluída que a brasileira. Mas uma coisa é fazer as coisas estruturadas, outra coisa é fazê-las por moda, o que levou à chegada de muitos treinadores portugueses que, na minha opinião, ainda não tinham capacidade para treinar equipas da Série A.
- Há também agora uma tendência de jogadores portugueses começarem a ir para o Brasil, e não são apenas futebolistas em fim de carreira. Acha que isso é algo que vai continuar?
- Eu acho que sim. A qualidade da liga aqui, em todos os aspetos, é muito grande. Lembro-me de há uns anos, quando o Jesus disse que a liga brasileira poderia ser mais competitiva e atraente do que a Premier League, ele foi muito criticado. Eu não chegaria a tanto, mas não sei se há na Europa ou no mundo uma liga tão competitiva como a brasileira. Ainda antes do início do campeonato, há seis, sete, até oito clubes com pretensões ao título. Isso torna a liga muito disputada. Além disso, os valores pagos aqui hoje em dia são bastante interessantes e capazes de atrair jogadores da Europa, principalmente de ligas menores ou com menor capacidade financeira, como a portuguesa (tirando os três grandes).
- Ou seja, pode ser uma tendência para continuar. Um jogador português de 25 anos pode optar por um clube de média dimensão no Brasil, entre os seis ou sete que lutam pelo título, em vez de escolher um clube de média dimensão em França ou em campeonatos ainda mais periféricos? Onde se situa a liga brasileira nesse cenário?
- Não a colocaria entre as cinco grandes ligas europeias. O jogador português que tenha uma oportunidade num desses campeonatos dificilmente virá para o Brasil. Mas, entre jogar no Estrasburgo e jogar no Flamengo, acho que um jogador português escolheria o Flamengo.
- Agora deixe-me armar-me em jornalista brasileiro e perguntar diretamente: contrataria algum português agora?
- Até contrataria alguns, mas esses são os que ainda não vêm para cá. Os que estão no Benfica, Sporting ou FC Porto ainda estão fora do alcance da liga brasileira, que não tem essa capacidade de atração sobre os três grandes portugueses. Mas o facto de terem regressado também alguns jogadores brasileiros de nomeada aqui no Flamengo – o Danilo, o Neymar no Santos, o Coutinho no Vasco, Depay no Corinthians – isso também faz diferença.