Toda uma vida contada  num décimo de segundo
Diogo Ribeiro venceu ouro no Catar (Imago)

Toda uma vida contada num décimo de segundo

OPINIÃO16.02.202415:05

«Ninguém se levanta sem primeiro cair». Esta a primeira frase de um livro que ainda não escrevi: 'O menino que queria ser merlim»

Quando aos 16 anos, foi abalroado por um automóvel, Diogo Ribeiro terá visto toda uma vida passar-lhe à frente dos olhos em apenas um décimo de segundo. Com pressentimentos de despedida. Acordou numa ambulância a caminho do hospital. Ficou sem parte do indicador da mão direita; uma fratura no pé e uma deslocação do ombro. Há momentos na vida que são absolutamente definidores. 

Uma borracha que apaga tudo o que tínhamos escrito e dado como garantido e um lápis para que possamos escrever tudo outra vez. Momentos em que as convicções são colocadas à prova, em que somos compelidos a rever a lista de prioridades e obrigados a assumir o leme da nossa vida. E tomar decisões que, antes mesmo de definirem o futuro, já nos definiram a nós mesmos. Uma viagem cujo ponto de partida é igual para todos: admitir que um evento trágico é um ponto final. Porque ninguém se levanta sem primeiro cair; ninguém dá a volta por cima sem primeiro ter sido derrubado; ninguém vence sem primeiro perder. E Diogo Ribeiro pensou, a caminho do hospital, que a carreira na natação tinha acabado.

Saramago tem mesmo razão

Quando, na passada segunda-feira, concluiu a final dos 50 metros mariposa, Diogo Ribeiro terá visto toda uma vida passar-lhe à frente dos olhos em apenas um décimo de segundo. Com pressentimentos de futuro. Acordou num pódio com uma medalha de ouro ao peito, uma bandeira hasteada e A Portuguesa a sussurrar-lhe orgulhos. Um décimo de segundo. A diferença para Michael Andrew, o segundo classificado. E quinze centésimos de segundo a diferença para o quarto classificado. No fundo a diferença entre subir ao pódio ou ficar na bancada a aplaudir os medalhados. Quinze centésimos de segundo! De facto, José Saramago tem razão: «É preciso andar muito para se alcançar o que está perto.» 

Aposto que Diogo Ribeiro já pediu à mãe que cozinhe massa com grão, carne, ervilhas e cenoura. Tudo misturado, como gosta de dizer. Um dos segredos que revela como estando na origem do sucesso - dormir na própria cama é outro segredo. Talvez por isso nunca quis sair de Portugal, dizendo não a quem lhe acenava com bolsas e condições de exceção. Por isso e por acreditar mesmo que em Portugal tem uma equipa de profissionais multidisciplinares de exceção. Que é possível ser-se o melhor do Mundo Made in Portugal. Bravo, Diogo. Obrigado aos profissionais que o acompanham. E aos dotes culinários da mãe, claro... Quando Diogo Ribeiro venceu a medalha de prata nos Mundiais de Fukuoka, escrevi que a vida do jovem nadador português poderia inspirar um livro infantil a que daria o título de O Menino Que Queria Ser Merlim. O peixe mais rápido do Mundo. A sua história merece ser contada, que bom este livro ter ainda tantas páginas em branco para serem escritas. 

Devemos aprender com os outros, se possível sem passar pelos tais momentos definidores que Diogo Ribeiro passou. Há um provérbio arménio que postula que «pagamos caro pela experiência que poderíamos ter obtido de graça com o nosso próximo». Numa versão bem humorada, a experiência é tudo o que obtemos quando não lemos primeiro o livro de instruções… Aproveitemos então a história e experiência de Diogo Ribeiro, que escreveu direito por linhas que chegaram a ser tortas.

Diogo, já leste Kipling?

Quem escreveu direito por… linhas direitas foi o escritor inglês Rudyard Kipling (1865-1936). O poema If, em português Se, continua afixado na parede do meu quarto. Escrito em 1895 - mas só publicado em 1910 - é a mais intensa interpelação à resiliência humana que alguma vez li. Porque o poema é algo longo, deixo apenas uma parte que é também um convite à leitura integral.

(...) 

Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida. 
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada, 
resignado, tornar ao ponto de partida. 

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto,
contudo, resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste! 

(…) 

Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!
 

O que mais me inspira em Diogo Ribeiro não é ter ganho a medalha de ouro dos 50 metros mariposa no Mundial de Doha. O que verdadeiramente me inspira é ele trocar as 24 horas de todos os dias por um décimo de segundo.