Do estrelato mundial a sem abrigo em Lisboa
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Do estrelato mundial a sem abrigo em Lisboa

OPINIÃO22.12.202320:42

O ressentimento é tomarmos veneno e ficarmos à esperar que seja o outro a morrer

Março de 2020.

Se eu tivesse a mania da perseguição diria que o Sem Nome estava a seguir-me. Mas não tenho. Mais do que por uma questão de princípio, por falta de disciplina e por preguiça mesmo. Na minha cabeça, a mania da perseguição, a teoria da conspiração e a mentira entram na mesma categoria: exigem uma grande disciplina mental, de memorização e preenchimento de espaços vazios, para não se abrirem brechas na coerência e não soçobrarem mais depressa do que se apanha um coxo. E isso dá muito trabalho. Um preguiçoso e um aluado sentem-se muito mais confortável com a verdade. 

Por norma, a explicação mais simples é a que está mais perto da verdade. E a verdade é que eu e o Sem Nome tínhamos rotinas fixas. Eu apanhava sempre o mesmo comboio e, chegado à estação do Rossio, parava para olhar o Castelo de São Jorge e fumar um cigarro. E àquela hora o Sem Nome passava, de olhos fixos no chão, apanhando beatas de cigarros que guardava religiosamente no bolso. Aos poucos troquei o Castelo de São Jorge pela curiosidade de observar o Sem Nome, que passava por mim e nunca me pedira um cigarro, porfiando em garimpar beatas da calçada… E a curiosidade foi crescendo. Aprendi na vida e na profissão de jornalista que uma boa história de uma só pessoa tem mais interesse do que a história de um grupo, de um país, até da humanidade.   

— Amigo, quer um cigarro? 

O Sem Nome não me respondeu, mas percebi que me ouviu, porque parou um segundo a marcha antes de a retomar, calcando as mesmas pedras de todos os dias. Por isso, nos dias seguintes voltei à carga. 

— Amigo, quer um cigarro? 

À terceira tentativa, o Sem nome não só parou como me olhou nos olhos. Senti um calafrio. Um olhar translúcido, uma ausência de melanina, como se toda a pigmentação tivesse caído no chão por tanto olhar para a calçada… As rugas formavam vales em dias de sol e rios em dias de chuva. O cabelo e a barba deveriam ficar brancas depois de um bom banho e o que lhe cobria o corpo terá sido roupa um dia. 

— Não preciso da ajuda de ninguém, está proibido de ter pena de mim… 

A voz era grave, cavernosa, vinda das entranhas mais profundas e com um ligeiro torpor que poderia resultar da falta de treino na fala… O tom, esse, era autoritário e de censura. Apanhou-me de surpresa e só ao fim de uns segundos lhe respondi. 

— Peço desculpa, não me expliquei bem. Não lhe estou a oferecer ajuda, estou a pedir-lhe ajuda. Estou a passar uma fase complicada, se aceitar este cigarro vou sentir-me melhor, que fiz algo de útil. Estou mesmo a precisar disso. Você pode ajudar-me, aceitando o cigarro? 

O Sem Nome não me respondeu. Continuou a olhar-me nos olhos como se estivesse a avaliar-me. E acabou por estender a mão e agarrar no cigarro. 

«O meu nome é Jorge e sou jornalista de A BOLA», disse-lhe. Dizer que sou jornalista de A BOLA já me livrou de algumas multas e já me abriu algumas portas, tinha a esperança que esse trunfo conseguisse manter ao menos entreaberta a porta que o Sem Nome aceitara abrir. E o certo é que pela primeira vez julguei ver algo de parecido com um esboço de brilho nos olhos. 

— Eu joguei futebol. Era médio centro. 

— Não me diga… Como é o seu nome? 

— Não tenho. Tomei demasiadas más decisões na vida, provoquei demasiado sofrimento, perdi o direito a ter um nome. Abdiquei. Com o tempo esqueci até que nome me deram... 

— Amigo, pelo que me está a contar, você está a carregar um fardo muito pesado nos ombros. Por muito graves que tenham sido os seus pecados, tenho a certeza de que já pagou o que tinha a pagar por eles. Acho que terá chegado a altura de se perdoar… 

Foi aqui que o perdi… O Sem Nome fechou os olhos, voltou a baixar a cabeça e regressou ao transe de sempre, apanhando beatas pelo caminho. Ainda agradeci a ajuda, mas já não tive qualquer resposta. 

A história de Perivaldo

Do Rossio à Travessa da Queimada, sede histórica de A BOLA, os 235 degraus das Escadinhas do Duque. O Sem Nome fez-me lembrar o Perivaldo. Baiano. Nascido em 1953. Um dos grandes laterais-direitos do futebol brasileiro. Craque no Bahia, Botafogo, Palmeiras e seleção brasileira. Polémica a decisão de ter ficado de fora do Mundial de 1982, naquela que, para mim, foi a melhor seleção que alguma vez vi jogar, com nomes como Cerezo, Júnior, Éder, Falcão, Zico, Sócrates ou Serginho Chalupa, este último até mais por achar graça ao nome… O conceituado jornalista brasileiro Edson Mauro batizou os cruzamentos de Perivaldo como «Menina Veneno»… No final da carreira, Perivaldo ainda tentou o Sporting de Marinho Peres. Sem sucesso. Por Portugal ficou e em Portugal pagou o preço de uma vida a acumular más decisões. O dinheiro esfumou-se ainda mais rápido do que a velocidade que tinha em campo. Passou a dormir nas ruas de Lisboa, ganhando trocados na Feira da Ladra a vender o que recolhia dos caixotes do lixo. 

Foi o humorista Nilton, em 2012, quem o descobriu por mero acaso, contando a sua história. A TV Globo soube e mandou repórter a Lisboa. E o Brasil comoveu-se. Mais tarde, o presidente do Sindicato dos Jogadores do Estado do Rio de Janeiro foi a Lisboa com alguns dos 11 filhos de Perivaldo e convenceu-o a regressar ao Brasil, prometendo-lhe emprego. Passou a acompanhar e a ajudar jogadores desempregados e a dar a história de sua vida como exemplo. 

Fala, Perivaldo. «Você está com bolso cheio de dinheiro. E como ele vai entrando sempre e em grande quantidade, tudo parece fácil. Se não tem cuidado, um dia você acorda e o bolso está vazio… Ninguém é culpado do que me aconteceu, eu é que fiz a vida correr mal. Estava montado num cavalo e fui montar num burro. Então, o burro sou seu…», contou à Globo.

Perivaldo morreu em 2017, com 64 anos, vítima de pneumonia. Cedo, mas a tempo de se reerguer. 

Quando perdoar salva vidas

Ainda hoje penso no Sem Nome. Escassos minutos de algo parecido com uma conversa, mas duas lições que ficaram ainda mais claras. 

— A caridade é, em primeiro lugar, uma ajuda a nós próprios e só depois aos outros. A ajuda é dar um sentido à nossa vida, ao outro é apenas resolver um problema. Quem fica a ganhar? Já há dois mil anos, Sêneca, advogado e escritor no Império Romano, o defendia: «Não existe ninguém que quando ajuda outra pessoa não se favoreça a si mesmo.» Se pensarmos um pouco, sabemos que estamos a amadurecer bem quando passamos a tirar mais gozo no dar do que no receber. 

— Guardar ressentimento é tomar veneno e esperar que seja a outra pessoa a morrer. Perdoar é o maior bálsamo, o mais curativo dos sentimentos humanos. Perdoar é o exercício supremo de liberdade e de reassumir o controlo da nossa vida. Perdoar é dizer que quem nos magoou — ou o que nos magoou — deixou de ter poder sobre nós. Nada desarma mais do que o perdão. E não necessariamente porque os outros o mereçam, mas porque nós merecemos. 

Março de 2020. Portugal regista oficialmente o primeiro caso confirmado de Covid-19. O País entra em confinamento. As rotinas quebraram-se e não mais me cruzei com o Sem Nome no Rossio. Só espero que tenha conseguido perdoar-se. 

Um Santo Natal a todos.