Sérgio Conceição com a restante equipa técnica
Sérgio Conceição com a restante equipa técnica - Foto: IMAGO

Sérgio Conceição merecia mais

Em Itália, voltou a mostrar de que é feito. Chegou, venceu a Supertaça… e saiu. Sérgio Conceição impôs ideias, mudou comportamentos e devolveu competitividade a uma equipa descaracterizada. Mas não lhe deram tempo, nem estrutura, para consolidar um projeto que prometia. E isso diz mais sobre o clube do que sobre o treinador

Sérgio Conceição chegou ao Milan pela porta grande. Levava consigo títulos, uma identidade de jogo bem vincada, um espírito competitivo inegociável e uma carreira no FC Porto que não deixou ninguém indiferente - nem admiradores, nem críticos.

Aterrava num país que bem conhece como jogador, com a ambição de fazer história num dos clubes mais emblemáticos do futebol mundial. E, no entanto, poucas semanas bastaram para surgirem as primeiras vozes impacientes, duvidosas, críticas.

Sobre Sérgio, costuma dizer-se que ou se gosta ou se odeia. Eu gosto. Gosto e respeito. Não é de agora. Porque Sérgio não finge, não se esconde, não representa um papel que não é o seu. É frontal, autêntico, apaixonado pelo que faz. E isso, num futebol cada vez mais moldado à imagem de conferências de imprensa estéreis e discursos formatados, é raro. Se às vezes passa do ponto? Talvez. Mas quem vive o jogo com intensidade verdadeira, quem sente cada treino, cada segundo de competição, arrisca sempre ir além. E há por aí muitos excessos semanais, bem mais graves, que se varrem para debaixo do tapete, só porque vêm de rostos mais conformados com o sistema.

O que me prende a Sérgio Conceição não é apenas o estilo - é a substância. É daqueles treinadores que, com pouco, faz muito. E não faltam exemplos do contrário: treinadores que, com muito, fazem muito pouco. O verdadeiro valor de um líder mede-se na capacidade de transformar limitações em força. Veja-se o que foi o FC Porto durante os seus sete anos: um clube com restrições financeiras severas, mas com uma competitividade feroz. Conquistou títulos, potenciou talento, trouxe Fábio Vieira, Vitinha, Diogo Costa e tantos outros para a ribalta. Jogadores que, com ele, passaram de promessas a certezas.

Na Europa, o FC Porto de Sérgio nunca foi figurante. Enfrentou gigantes, venceu orçamentos esmagadores com organização, coragem, estratégia e competência. E fê-lo sem desculpas, com uma exigência constante.

Em Milão, encontrou um clube desequilibrado, sem identidade, com um balneário instável e lacunas evidentes no plantel. Mesmo assim, em poucos meses, conquistou a Supertaça de Itália - vencendo a Juventus nas meias e o Inter na final (3-2) - e levou o Milan à final da Taça, eliminando novamente o Inter com um agregado de 4-1. Perdeu apenas na final, por 1-0, com o Bolonha. Resultados que, para quem conhece os bastidores do clube, deviam ter pesado mais.

Ao contrário do que muitos previam, Sérgio não impôs um modelo à força. Adaptou-se, respeitou a Serie A, manteve os princípios: organização, pressão intensa, critério, equilíbrio. A identidade milanista começou a mudar com ele. A equipa passou a defender melhor, a lutar mais, a competir com consistência. Com um modelo pragmático, moldado à realidade, Sérgio trouxe eficácia a um grupo que até então vivia de intenções e pouco mais.

É verdade que o Milan falhou o apuramento europeu via campeonato. Mas Sérgio não merecia, pelo menos, uma época de raiz? Com tempo, com escolhas feitas por si, com um projeto estruturado à sua imagem? Eu penso que sim. Porque nos meses em San Siro limpou o ruído, reencontrou a base, filtrou o grupo, devolveu identidade e espírito competitivo ao Milan.

Pepe, capitão de tantas batalhas ao seu lado, disse-o sem rodeios: «É um líder com uma paixão contagiante. Obriga-nos a dar sempre o máximo. Não aceita menos do que isso.» Arrigo Sacchi, referência do Milan e do futebol mundial, deixou o alerta: «Conceição tem uma ideia clara de jogo. O problema é que o Milan vive entre projetos inacabados. Se acreditarem nele, têm treinador para o futuro.» José Mourinho reforçou: «Em Portugal somos muito bons, mas lá fora temos de ser perfeitos. O Sérgio está preparado para isso. Precisa é de não ser travado por dentro.»

Essas palavras deviam ter ecoado com mais força em San Siro. Mas não foram ouvidas. E, mais uma vez, um projeto com potencial foi interrompido não por falta de competência, mas por falta de visão e paciência.

Sérgio Conceição não engana ninguém. Onde entra, entra com tudo. Traz intensidade, paixão, exigência. Vive o futebol ao limite - e tem resultados.

Tem um perfil que tanto incomoda como inspira. E essa intensidade vem de um lugar profundo - da sua história de vida: «As coisas que me aconteceram a nível familiar deram-me esta força. Aos 4 anos perdi um irmão de 12. Depois, o meu pai morreu quando eu tinha 15, e a minha mãe já tinha sofrido um derrame, ficou paralisada. Eu, pequeno, tive de ajudá-la em tudo… Não tínhamos dinheiro, mas tínhamos um amor tão grande... Lembro-me sempre de uma frase: ‘quem tem mãe é rico e não sabe’, e é verdade.»

Essa força interior, feita de perdas, de amor incondicional e superação, moldou a forma como Sérgio olha o mundo, o futebol e as pessoas. Explica a sua resiliência, a sua frontalidade, a sua enorme exigência - com os outros, mas sobretudo consigo. Exige porque sabe, desde cedo, o que custa construir com adversidade. É isso que o torna tão intenso, tantas vezes incompreendido - mas profundamente humano.

Sérgio Conceição merecia mais. Merecia tempo. Merecia convicção. Merecia que o julgassem pelo que realmente construiu. Não é um treinador para agradar a todos - e ainda bem. É um treinador para transformar. Em San Siro, talvez tenham preferido o conforto à exigência. Talvez não estivessem preparados para alguém que não pede licença para liderar.

Gosto de Sérgio Conceição pelo que constrói, pelo que exige - de si, dos outros, do jogo. Porque, num futebol cada vez mais moldado à imagem do que parece, ele continua a ser, para o bem e para o mal, aquilo que é: frontal, obsessivo com o detalhe, incansável na procura da vitória.

E isso, hoje, é raro. Raro e precioso.

Sérgio saiu de Milão como entrou: de cabeça levantada, fiel a si mesmo, com a consciência tranquila de quem deu tudo. E voltará a vencer. Porque o futebol, mais cedo ou mais tarde, devolve o que se constrói com paixão e competência.

 «Liderar no Jogo» é a coluna de opinião em abola.pt de Tiago Guadalupe, autor dos livros «Liderator - a Excelência no Desporto», «Maniche 18», «SER Treinador, a conceção de Joel Rocha no futsal», «To be a Coach» e «Organizar para Ganhar» e ainda speaker.