Obrigado, D. João II
Não haveria este futebol, que hoje consideramos moderno, sem Johan Neeskens. Provavelmente, chegaríamos lá de outra forma, guiados por outros, porém a evolução talvez não tivesse sido tão direta e rápida. Certamente, não teria tido os mesmos protagonistas.
O futebol é em absoluto sobre espaço e a forma como este é manipulado. É o principal fundamento do Futebol Total, que procura fazer o campo grande em posse e pequeno sem esta, para que seja mais difícil ao adversário mantê-la. Não se trata só do 4x3x3 que se desmonta, pela ação do líbero, em 3x4x3, mas também de uma linha de fora de jogo agressiva, uma pressão alta intensa, espoletada e comandada precisamente por Neeskens – só possível com o fim da Segunda Grande Guerra e as melhorias na nutrição, na ciência desportiva e no treino – e inspirada na metodologia científica de Valeriy Lobanovskyi no Dínamo Kiev – por sua vez, pupilo incontrolável de Viktor Maslov (o maior impulsionador da estratégia a nível global) – e o intercâmbio constante de posições num sentido vertical, ou seja, entre lateral, médio e extremo de cada lado e os restantes no centro, pouco comum na época e que desestabilizava blocos baixos.
Quem o viu jogar ao vivo descreve-o como médio elegante de energia incrível, demolidor, com forte mentalidade e poderoso remate de fora da área. «Valia por dois no meio-campo», lembrou várias vezes o seu companheiro no Ajax Sjaak Swart em entrevistas que ecoaram pelos anos. No futebolês corrente chamar-lhe-íamos box to box e se outros do seu tempo dificilmente hoje se agigantariam nos relvados, dada a evolução do jogo, sobre Neeskens temos a certeza de que seria tão ou mais fulcral em qualquer equipa.
Avancemos com a história. Rinus Michels é um dos avançados na terceira passagem pelo Ajax de Jack Reynolds (1950), um dos evangelizadores ingleses no espalhar do jogo e que implementa uma filosofia transversal a todas as equipas, que obriga todos os futebolistas, dos jovens aos seniores, a jogar da mesma forma. São também os primeiros passos do mítico sistema de formação ajacied. As sementes serão aproveitadas por Vic Buckingham, antigo jogador do Tottenham e adepto do passing game, que implanta com sucesso um WM fluido durante dois anos até sair para o Sheffield Wednesday. Quando volta, já não é bem-sucedido. É substituído por Michels, que profissionaliza o plantel e coloca a bola como maior protagonista do treino, essencial para a criação de atletas virtuosos. Adota o 4x2x4 do Brasil bicampeão de 1958 e 62, com Piet Keizer, o líder e ícone cultural Johan Cruijff, Sjaak Swart e Henk Groot no ataque, e o combativo Bennie Muller ao lado do mais técnico Klaas Naninga no meio-campo. Neeskens ainda é lateral-direito.
Na defesa, Velibor Vasovic torna-se fundamental na transformação do 4x3x3 em 3x4x3 – na defesa a liderar uma linha de fora de jogo bastante alta e a cortar o que sobra, e no ataque a subir para o meio-campo para a organização do jogo –, que acompanha décadas posteriores do futebol holandês, com outros protagonistas. No entanto, Michels apercebe-se, depois de um empate com o Feyenoord, de que com quatro avançados é difícil manter a posse como gosta e acrescenta mais um médio, resultando no esquema final.
O Ajax ganha três Taças dos Clubes Campeões Europeus seguidas, 1971, 1972 e 1973, as duas últimas já com o romeno de ascendência húngara Stefan Kovacs, menos disciplinador do que Michels e também várias vezes acusado de permitir demasiado aos jogadores. Entretanto, Cruijff perde a braçadeira de capitão com a entrada de George Knobel, em 1973/74, que entrega a decisão a uma votação do plantel – na maioria já descontente com o excesso de influência do craque –, e este segue os passos, com dois anos de atraso, de Michels, levando o totaalvoetbal para o Barcelona, onde conquistará uma Taça do Rei e uma Taça das Taças. Contam inevitavelmente com o apoio incondicional de Neeskeens, que também passa a vestir azul e grená. Em 1974, os três lideram a seleção holandesa, que só perde na final do Mundial diante da Alemanha. Neeskens é dos três o mais discreto, o lugar-tenente do histórico 14.
Na decisão de Munique, joga-se mais do que um jogo de futebol. Vítimas da Segunda Guerra, os holandeses querem vingar-se e humilhar os alemães. Willem van Hanegem, por exemplo, que perde inúmeros familiares durante a ocupação nazi, recusa-se participar no banquete posterior à grande final.
Durante quase um minuto, a Mannschaft é obrigada a correr atrás da bola, até que Cruijff decide arrancar para a baliza. O seu marcador todo-o-terreno Berti Vogts fica para trás e Uli Hoeness provoca o derrube fatal na área. Neeskens, dos 11 metros, não perdoa. É o golo mais rápido em finais. Apesar da vantagem, os holandeses ficam indecisos e perguntam-se se o melhor é carregar para chegar ao 2-0 ou simplesmente gerir o resultado. Os germânicos aproveitam e reagem, sempre comandados pelo kaiser Beckenbauer.
Hölzenbein cai na outra área e Jack Taylor, corajoso, aponta para novo penálti. Paul Breitner bate Jan Jongbloed pela primeira vez, aos 25 minutos. Depois aparece Müller, aos 43, e inesperadamente os da casa estão na frente graças ao instinto de predador do seu ponta de lança. Com Cruijff agora sim bem vigiado por Vogts, a Laranja Mecânica parece espremida, sem sumo e, tal como 20 anos antes perante a formidável Hungria, a Alemanha irá bater outra das melhores seleções da história. Outro dos melhores perdedores de sempre.
Neeskens, sempre ele, ainda tem duas oportunidades, porém o felino Sepp Maier defende. Após perder a final de 1966 e ter ficado em terceiro quatro anos depois, Beckenbauer ergue finalmente a taça de campeão. Cruijff, vencedor insaciável, despede-se do seu Mundial no lado vencido. Não será para sempre. Ninguém influenciará tanto o jogo como o Pitágoras com Botas, como lhe chamou David Winner. Mas nunca teria chegado onde chegou sem o seu Segundo ao lado.