O treinador ‘streamer’

Decisão espontânea ou estratégica, Luis Enrique já era um dos protagonistas deste Mundial mesmo antes da goleada à Costa Rica

P ODE um treinador ser um dos principais protagonistas de um Campeonato do Mundo? Pode, se considerarmos que o futebol é muito mais que um jogo de 90 minutos disputado num retângulo de 105 x 68 metros. E nesse campeonato, Luis Enrique começou  a golear (muito antes dos 7-0 à Costa Rica) pela inesperada decisão de se tornar streamer enquanto decorre o torneio. Munido de auscultadores, microfone, decoração, projetor de luz e um computador, o selecionador de Espanha decidiu romper com a tradição e responder diretamente àqueles que o acompanham nos diretos na plataforma Twitch, cujas sessões chegam a demorar mais de uma hora.
Como em tudo o que diz respeito ao futebol, só os resultados caucionam comportamentos menos convencionais e admito que estava curioso para perceber o tipo de reações a esta revolucionária forma de comunicar do antigo campeão europeu pelo Barcelona. Não tendo dúvidas de que se La Roja tivesse feito um mau resultado no jogo de estreia muitos diriam que Luis Enrique andou mais ocupado a brincar ao streaming do que a pôr os seus homens a jogar bom futebol, o que dizer depois do resultado mais volumoso alcançado pela seleção em Campeonatos do Mundo? Ainda é cedo, mas talvez o asturiano esteja a inaugurar algo de novo, verdadeiramente impensável até há um par de semanas: uma proximidade entre um treinador e adeptos (maioritariamente os mais jovens) em tempo real, numa era em que se discute bastante sobre o afastamento dos mais novos em relação ao desporto-rei .
O perfil também ajuda. E Luis Enrique parece ter nascido para isto: fala sem complexos ou filtros e mostra um sentido de humor que, confesso, desconhecia. Quando lhe perguntaram, por exemplo, na primeira sessão (com mais de 1,2 milhões de visualizações) quem era a sua extensão em campo (como Busquets era para Vicente del Bosque) respondeu «Ferrán Torres», nada menos que o namorado da filha do selecionador (a fazer lembrar os tempos de Aguero na seleção argentina treinada pelo sogro Diego Armando Maradona).
Só o tempo julgará as virtudes ou pecados de uma iniciativa tão disruptiva. Disse o treinador que tomou esta decisão influenciado pelo filho adolescente, fã do streaming, mas quem sabe se não estaremos a assistir a uma estratégia genial de retirar toda a pressão aos jogadores. Pouco importa se foi assim tão espontâneo ou algo muito mais estruturado, mas isto vem provar que o dia a dia de uma seleção não tem de ser um segredo de Estado. Luis Enrique revela detalhes da preparação, partilha histórias e diz o que pensa sobre os jogadores, individualmente. A ironia disto tudo é o facto de ser alguém que não dá entrevistas aos meios de comunicação tradicionais, o que faz dele um treinador apenas tolerado (mas não amado) pelos media. Confesso que estou ansioso por assistir a um stream depois de uma derrota espanhola no Catar. Se é que isto irá acontecer...

PS: Ter Cristiano Ronaldo de cabeça limpa ajuda para o arranque do Mundial, mas este é o momento da história da Seleção em que o capitão terá de ser mais um. Se durante muitos anos foi CR7 a carregar a equipa às costas, agora terá a equipa a carregá-lo. Não por gratidão, mas por inteligência - é o melhor ponta de lança que Portugal tem.