O milagre que contraria o mercado de transferências
Muitos chamam-lhe um dos grandes milagres do futebol. Em certa medida assim o é e mais visível se torna na época das transferências milionárias: num momento em que somos bombardeados pelos grandes negócios de verão, Bilbau parece pertencer a um planeta diferente, mas nem por isso menos respirável.
Ainda falta muito para encerrar o mercado, mas tenho para mim que a grande bomba deste verão foi a permanência de Nico Williams no Athletic em vez da transferência para Barcelona e a consequente renovação de contrato por 10 anos, podendo o internacional espanhol tornar-se num one man club, uma raridade num desporto cada vez mais global.
Façamos porém uma pausa no romantismo: Nico vai ganhar 10 milhões de euros líquidos por época e por sua vez o Athletic tem uma despesa total inferior porque goza de benefícios fiscais únicos em Espanha pela via da autonomia política. Fechado o parêntesis, vale a pena recordar este modelo único nas grandes ligas: como é que um clube que só utiliza jogadores do País Basco e maioritariamente (cerca de 80 por cento) da Biscaia, cuja população tem pouco mais de um milhão de pessoas, consegue ter tanto sucesso?
É em períodos como este, marcados pelas compras e vendas milionárias que vale a pena a reflexão. E de como muitos clubes de dimensão e história semelhantes se perdem demasiadamente na lógica da plataforma circulatória em vez da procura do enraizamento.
Vejamos: em comparação com todos os seus concorrentes, a capacidade de recrutamento do Athletic ronda os 0,04 por cento. O que fez então o clube? Tornou a proximidade numa arma: criou uma academia (Lezama) no início dos anos 70 (há mais de 50 anos, quando esse conceito tem pouco mais de 20 em Portugal), tem 160 filiais espalhadas pelo País Basco e uma grande rede de profissionais que supervisiona e acompanha todos os jovens com potencial para chegar à equipa principal.
Claro que se trata de um conceito que não pode ser replicado, pelo menos na íntegra, isso é defendido pelos próprios dirigentes bascos. Porque se trata de uma cultura muito específica: os meninos e meninas cantam o hino nas escolas, o clube cria muitos eventos culturais, faz parte do tecido social da cidade; os jogadores das camadas jovens têm o sonho de jogar no Athletic, não no Real Madrid ou no Barcelona. É por isso que cada futebolista profissional passa, em média, sete anos na equipa, de longe a relação jogador/clube mais prolongada de Espanha.
Tratando-se de um caso único, tem no entanto bases que são semelhantes noutras latitudes, nomeadamente nos três grandes de Portugal: um forte sentimento de pertença, uma base social suficientemente ampla para gerar receita e capacidade de formar. O que há então de tão diferente? 50 por cento das receitas dos bascos vêm dos direitos centralizados de TV, qualquer coisa como €72 milhões/ano. E a venda de jogadores representa apenas 20 por cento, menos do que a bilhética e sponsorização juntos.
Fossem todos os clubes como o Athletic, certamente que os empresários de futebol iriam à falência. Porque não compram jogadores, formam-nos (gastam €10 milhões por ano na cantera). Mas de vez em quanto vale a pena parar e perceber que ainda há locais onde o futebol se vive à antiga, mas com armas contemporâneas (estádio novo, academia e grandes recursos financeiros). Só que para qualquer adepto dos leones é mais importante ter uma equipa na qual se reconheçam do que vencer uma Taça (e mesmo assim já ganharam 24). Talvez a explicação esteja aqui.