O guardião da memória do Atlético

De Eusébio a jogar pelo alcantarenses até ao título de campeão do emblema da Tapadinha, Rui Gomes conta todo em livro

Rui Gomes, 63 anos, é fanático pelo Atlético. « Vivia aqui muito perto; era muito pequenino e já vivia o futebol. Era doido. Tinha uma simpatia para o Benfica também, mas o Atlético mexia muito comigo. E havia a I Divisão. O Atlético tinha essa vantagem. E como tal, comecei a vir muito, muito cedo.  O meu pai não tinha vida para isto, não me trazia, mas eu vinha sozinho e orientava-me. Assim, criei uma grande paixão pelo clube», relata.

Os anos foram passando, o Atlético foi descendo de estatuto desportivo mas o amor manteve-se. A ideia de escrever um livro surgiu na altura da pandemia de Covid- 19, quando começou a fazer posts na internet, a colocá-los nas páginas ligadas ao clube a verificar que estes tinham grande adesão. Na altura, em 2020, o Atlético estava nos regionais, mas, ainda assim, a expensas próprias, lançou mãos à obra do Atlético Clube de Portugal, 80 anos de história, com prefácio do antigo presidente da FPF Fernando Gomes e que ainda hoje está à venda .«Fiz tudo sozinho, tudo. Comecei em 2019, 2020 e acabei em final de 2022. Presumo tenha gastado nunca menos que 300 horas. Paguei-o todo, inclusive até os direitos de autor. Sou vice-presidente da Mesa da AG e esperava que numa reunião magna tivesse havido já alguma referência. Não houve, mas a paixão suplanta tudo», adianta.

O CACHET QUE SÓ O 'KING' RECEBEU

Eusébio da Silva Ferreira, o king, é figura maior do futebol nacional e do Benfica mas poucos sabem que, uma dia, jogou pelo Atlético. «O Eusébio jogou para o Atlético uma vez. Em 1976/77 descemos da I divisão pela última vez e em abril ou maio já com a descida garantida, o clube não se importava muito. Recebemos um convite do Bastia, de França, para ir lá jogar e eles puseram uma condição: podíamos levar três jogadores de fora do clube. Na altura, o Agostinho Gil, que era o diretor do futebol e foi falar ao Estoril e pediu o Óscar e o Zezinho. E vieram. Faltava um. Alguém se lembrou que o Eusébio estava livre e precisava de dinheiro. E ele aceitou com uma condição: ‘o meu cachet faço eu e só recebo antes do jogo e, depois, entro em campo’. O organizador aceitou. Quando lá chegou, recebeu o cachet, equipou-se, jogou meia hora, foi-se embora e ninguém mais o viu», relata, para depois contar o inusitado. «O Atlético ficou até ao fim e ganhou 1-0, com um golo do Norton de Matos, mas o homem que era para pagar desapareceu, só que o clube fez uma coisa engraçada: o hotel era por conta da organização, então, a ordem para os jogadores foi para consumirem tudo até que pagassem. Isto acabou tudo na esquadra. Meteu o cônsul, pois a conta já ia muito alta. O Atlético foi pagar e veio-se  embora», junta, lamentando que não haja um único registo fotográfico do momento.

Do imaginário do Atlético consta que o clube de Alcântara nunca ganhou ao Benfica, mas Rui Gomes descobriu que não é assim. «Além de termos ganho para a Taça Portugal 3-1 uma vez em 1947, da Taça Portugal precisamente com Benfica, tínhamos-lhes ganho por 3-2. Portanto, vencemo-los em 1946 e em 1948, quando já havia campeonato nacional», justifica.

CAMPEÕES NACIONAIS

O Sporting reclama que tem 25 campeonatos nacionais, pois inclui nessa contabilidade quatro Campeonatos de Portugal. Pela mesmo ordem de ideias, Rui Gomes diz que o Atlético tem um campeonato nacional no currículo. «Nascemos da fusão do Carcavelinhos, que era da parte mais popular de Alcântara, e do União de Lisboa, que era mais aristocrata, de Santo Amaro. E em 1927/ 1928 o Carcavelinhos no Campeonato de Portugal, que tinha um formato similar à Taça de Portugal, limpou tudo, derrotando o Benfica na meia-final por 3-0 e o Sporting na final por 3-1. E há uma história muito curiosa, porque o Carlos Canuto, grande figura do desporto nacional, jogou essa final como capitão do Carcavelinhos e no ano seguinte, como era árbitro, apitou a final entre o União e o Belenenses, que terminou com a vitória dos azuis, por 2-1. Infelizmente, o União não ganhou, senão tínhamos mais um campeonato», defende.

GERMANO E BEN DAVID

Rui Gomes aponta Germano de Figueiredo, que também jogou no Benfica e foi campeão europeu em 1960/61 e em 1961/62, como a maior figura desportiva dos alcantarenses. «Ele esteve doente mas  recuperou e estava a jogar bem. Tinha um acordo alinhavado com o Sporting, mas este hesitou e isso foi fatal. O Benfica apareceu, pagou 500 contos [2500 euros], ainda incluiu, salvo erro, um jogador chamado Espírito Santo e levou-o», conta.

Germano Marques de Figueiredo equipado à Atlético, antes de ingressar no Benfica (Foto A BOLA)

Mas o historiador coloca quase a par de Germano o avançado Henrique Ben David, sobre quem adianta história bem curiosa: «O Atlético foi jogar à África do Sul, onde figurava o apartheid, a segregação racial,  e no hotel ao pequeno-almoço e houve um burburinho, com o chefe de sala a chamar o presidente do Atlético e a dizer que ele não podia estar na mesa porque era negro e sugeriu que o colocassem na copa, com os empregados. O Atlético recusou e ameaçou ir-se embora mas chegou-se a um acordo estúpido em que ele não se podia levantar da mesa porque os outros clientes estavam incomodados. No jogo sucedeu o mesmo e o presidente do Atlético manteve-se firme. Ganhámos 5-2 e o Ben David marcou dois golos», resume.

Ben David esteve para ser 'barrado' na África do Sul, mas não foi (Foto A BOLA)

Para o jogo desta sexta-feira, Rui Gomes relembra o encontro em 2006/07 quando os alcantarenses eliminaram o FC Porto no Estádio do Dragão. «Nada é impossível. Se o Benfica jogar o que anda a jogar, poderá ter problemas se o Atlético acreditar», conclui.