RD Congo: CAN serviu para mostrar a ferida dos Leopardos
Gesto de protesto dos jogadores congoleses antes da partida das semi-finais do CAN frente à Costa do Marfim (IMAGO / Newscom World)

RD Congo: CAN serviu para mostrar a ferida dos Leopardos

INTERNACIONAL13.02.202419:39

Enquanto disputava o CAN a seleção da RD Congo aproveitou o mediatismo da prova para alertar para a silenciosa catástrofe humanitária no país

Que o desporto e causas sociais andam de braço dado, já não é segredo. Não é necessário recuar muito para vermos causas defendidas dentro das quatro linhas, ou pelo menos à margem do terreno de jogo: a Taça Asiática foi exemplo disso, com a seleção da Palestina a usar a visibilidade da competição para chamar a atenção do mundo para o conflito em Gaza.

No Campeonato Africano das Nações não foi diferente, com a seleção da República Democrática do Congo, que ficou em quarto lugar, a aproveitar a competição para tentar alertar o mundo para a crise humanitária no país.

Até o momento do hino foi aproveitado para marcar posição, com os jogadores a tapar a boca com uma mão, enquanto com a outra mão fazia de arma apontada à cabeça.

Gesto dos jogadores congoleses durante o hino nacional (IMAGO)

«Eles estão a matar em silêncio» e «nunca mais sozinhos», foram as frases utilizadas para vincar a posição.

Afinal, o que está a acontecer na RD Congo?

A RD Congo atravessa uma crise humanitária descrita por organizações internacinais como silenciosa. Desde 1996 que cerca de seis milhões de congoleses já foram mortos no leste do país, e os números continuam a aumentar. 

De acordo com dados da Organização Internacional para as Migrações, o conflito já deslocou mais de 6,9 milhões de pessoas. O Banco Mundial estima que uma em cada seis pessoas que vivem em situação de pobreza extrema na África Subsariana são da RD Congo. Além disso, em 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU) descreveu o Congo como a «capital mundial da violência sexual». 

Por entender que a situação no país não tem a atenção mediática necessária, a seleção congolesa viu no CAN uma oportunidade de chamar a atenção do mundo para a crise que o país atravessa.

A que se deve o conflito na RD Congo?

A RD Congo é extremamente rica em recursos minerais, mais concretamente, em cobalto (70% da produção mundial) e coltan (60%), dois materiais essenciais para a produção e alimentação de dispositivos eletrónicos. Além disso, o país é o quarto maior produtor de cobre do mundo, e possui, ainda, reservas de ouro, lítio, tungsténio e manganês. 

Posto isto, existe um conflito armado pelo controlo das regiões do leste do país (Kivu do Norte, Kivu do Sul, Kasai e Katanga), nas quais estão identificados mais de 120 grupos armados, com especial destaque para o M23, que a ONU diz ser apoiado pelo Ruanda.

A situação de pobreza extrema beneficiam as potências que exploram a riqueza mineral da RD Congo, já que aproveitam a mão de obra quase escrava.

A notável campanha da RD Congo no CAN

Depois de ter perdido a vaga no CAN 2021, realizado nos Camarões, a seleção da RD Congo conseguiu redimir-se junto dos seus adeptos, ao qualificar-se para a edição da Costa do Marfim. 

Os Leopardos terminaram em 1.º lugar na qualificação, obtendo uns notáveis 12 pontos, num grupo composto ainda pela Mauritânia (qualificada no 2.º lugar), Gabão e Sudão.

Em busca de um terceiro título continental, a convocatória do francês Sébastien Desabre incluiu Simon Banza, avançado do SC Braga, e também Chancel Mbemba, antigo central do FC Porto, agora no Marselha.

Os congoleses terminaram a fase de grupos no segundo lugar, com apenas 3 pontos, após terem empatado com Zâmbia (1-1), Marrocos (1-1) e Tanzânia (0-0). 

A fase de grupos esteve longe de encher o olho, contudo, mas a equipa ganhou novo fôlego com o apuramento. O adversário dos oitavos de final foi, nada mais nada menos, que o Egito, orientado por Rui Vitória, finalista vencido da edição de 2021. Após o empate a uma bola, a RD Congo derrubou o recordista de títulos no desempate por penáltis.

O adversário dos quartos de final foi Guiné-Conacri. Apesar de terem começado a perder logo aos 20 minutos, os Leopardos mostraram os dentes e acabaram por operar a reviravolta e vencer por 3-1, com direito a golo do capitão Chancel Mbemba.

O sonho congolês foi desfeito nas meias-finais, pela anfitriã do torneio, a Costa do Marfim. O golo solitário de Sébastien Haller, aos 65 minutos, foi a machadada final nas aspirações congolesas de vencer a competição. 

No jogo de atribuição do último lugar do pódio, a seleção congolesa acabou derrotada nos penáltis pela África do Sul, mas a campanha deixou o país orgulhoso, e serviu o propósito de deixar um alerta social.

Visibilidade para a crise na RD Congo

Gestos como o do hino, bem como a utilização de fitas negras no braço em sinal de luto, conseguiram chamar a atenção de quem assistia ao CAN.

Henoc Inonga durante o hino congolês (IMAGO / Newscom World)

Ainda antes do início da prova a seleção congolesa uniu-se ao Fundo Nacional de Reparação para Vítimas de Violência Sexual (Fonarev).

Através das redes sociais, a organização publica, frequentemente, fotografias e vídeos em que a comitiva congolesa exibe camisolas da Fonarev com a mensagem «Nunca mais sozinhos», como forma de apoio e solidariedade para com as vítimas de violência sexual nos conflitos da RD Congo.

Além disso, os Leopardos contaram com a presença de Lucien Lundula Lolatui, diretor geral da Fonarev, nos seus treinos.

Até mesmo em imagens promocionais dos jogos da RD Congo existiram referências aos massacres no país. Os jogadores congoleses apareciam nessas imagens com a mão estendida, em alusão ao logotipo da Fonarev, que se tornou um dos símbolo dos Leopardos para a campanha de apoio contra a violência sexual.

Nas suas plataformas oficiais, a Federação Congolesa de Futebol também partilhou um discurso do capitão Chancel Mbemba a mostrar solidariedade para com a população do país.

Os jogadores tambem usam as suas redes sociais para denunciar os massacres na RD Congo. A título de exemplo, Simon Banza, Chancel Mbemba, Cédric Bakambu e Joris Kayembe, entre muitos outros (até mesmo jogadores que não foram convocados), já alertaram publicamente para a situação vivida pelo povo congolês. 

«Usem a mesma energia que usam para falar do CAN, para destacar o que está a acontecer connosco, não existem gestos pequenos», referiu Bajambu durante o torneio.