«Falar de Cristiano Ronaldo na China é deles fazerem uma vénia»

«Falar de Cristiano Ronaldo na China é deles fazerem uma vénia»

INTERNACIONAL05.12.202315:21

Leonel Pontes, diretor técnico do Shanghai Shenhua, em entrevista a A BOLA

Depois de passagens por muitos sítios e duma ligação quase umbilical ao Sporting, no qual foi treinador interino, Leonel Pontes ‘aterrou’ na China para ser diretor técnico do Shanghai Shenhua. O madeirense, 51 anos, conta-nos como é a vida e o futebol por aquelas paragens e a admiração pelo seu educando e amigo CR7. 

- Depois de experiências em muitos países, rumou à China. Como estão a ser estes tempos no Shanghai Shenhua?

— Não é novidade para mim estar num clube grande, pois este é um dos maiores emblemas da China. Xangai tem dois clubes, o Shanghai Port e o Shanghai Shenhua e este clube tem grandes condições, com bons jogadores para a realidade da China, tendo um ou outro jogador que poderia iniciar o processo de formação na Europa. Está a ser uma experiência boa, exigente mas boa.

— Quantos milhões de adeptos tem o clube?

— Não consigo dizer. Sei que a cidade, no papel, tem 24 milhões mas as pessoas com quem contacto dizem que está perto de 30 milhões. É uma cidade gigante, muito organizada e que vive muito o futebol. O estádio do Shenhua tem 60 mil lugares mas hoje em dia não consegue ter a sua capacidade máxima ocupada porque estão a fazer a linha 23 do metro que passa por debaixo do recinto e, por isso, está limitado a 40 mil pessoas. Normalmente, está cheio. Não consigo dizer o número de adeptos mas são muitos. É só observar um jogo em casa, os adeptos são imensos e há uma grande adesão de pessoas aos jogos e ao clube.

— Como é o seu dia a dia numa cidade gigante?

— A semana é ocupada com futebol. Faço o meu treino em dias alternados no ginásio do clube, às 7 da manhã, e às 8.45 horas estou a entrar no meu gabinete. Normalmente, tenho reuniões de trabalho de manhã. Também acompanho o treino das equipas. Estou quase sempre no relvado até ao meio dia e depois vou almoçar no restaurante do clube. Após o almoço, reunimos com  diferentes equipas técnicas ao longo da semana. Sempre que há jogos particulares e oficias tento estar presente a observar. Nesta fase, após o período de maior observação e análise, começamos a ter reuniões mais regulares com as equipas técnicas e com alguns jogadores. Sempre que há torneios fora, vou com a equipa. É muito importante conhecer muito bem as equipas técnicas e os jogadores e nesta fase já tenho um conhecimento muito grande do processo de trabalho, dos treinadores e dos jogadores. Ao fim de semana é tempo de observar alguns jogos e conhecer a cidade. Tem muitos pontos de interesse cultural e social.

— Xangai tem um estilo de vida ocidentalizado?

— A cidade é enorme com cerca de 30 milhões de habitantes, muito limpa organizada e segura; é cosmopolita, luxuosa e com elevada qualidade de vida. Tem um estilo ocidentalizado, muito turística e onde se pode encontrar facilmente pessoas de todo o mundo e lojas mais estilizadas e que representam as melhores marcas mundiais. Ainda há dias estive no maior Starbucks do mundo, um café estilizado, com mistura do estilo moderno e as máquinas antigas de moer café. Xangai é a capital financeira da China e nesse sentido sente-se o poder financeiro e a capacidade económica da população.

Leonel Pontes na China (DR)

— Qual o objetivo do seu trabalho?

— Sou diretor técnico, trabalho entre os sub-11 e os sub-21, com ligação direta à equipa principal e em contacto direto com o diretor desportivo. Foi ele que me convidou para abarcar este projeto. E tenho como objetivo organizar o departamento de formação; ser o treinador dos treinadores, criar uma filosofia de futebol que permita fazer crescer jogadores; potenciar os melhores no sentido de poderem chegar à equipa principal; ter uma atenção ao recrutamento de jogadores, principalmente dentro da área de Xangai e, no fundo, é fazer aquilo que o Sporting começou a fazer em 2000, que é criar condições à volta dos jovens jogadores para que possam crescer e serem profissionais de futebol. Esse é o grande objetivo porque tem excelentes condições para que isso aconteça. Por exemplo, tem dez relvados, entre sintéticos e naturais, tem um ginásio, piscina, tudo dentro de um condomínio fechado onde também os jogadores entre os 16 e os 21 anos lá vivem.

— Os adeptos e os responsáveis do clube sabem da sua ligação a Cristiano Ronaldo?

— Eles são muito ligados à internet e às redes sociais. Um dos elementos mais importantes para eles é o telemóvel. Aliás, a primeira coisa que o presidente me disse na primeira reunião foi que a coisa mais importante na China é o telemóvel e que não se pode perdê-lo. As pessoas passam o dia agarradas ao telemóvel; no metro, a conduzir, de mota agarrados ao telemóvel a mandar mensagens; é incrível e o telemóvel é quase a extensão do corpo deles porque fazem tudo através deles e eles têm uma rede social constante e as informações passam muito rápido. Sim, eles sabem que fui encarregado de educação e treinador do Ronaldo e esse é um ponto a meu favor. Eles estão muito a par do que se passa na Europa ao nível do futebol, apesar de terem restrições, normais em países com este tipo de gestão.

Cristiano Ronaldo também é grande ídolo por aí ?

— Grande ídolo. Falar de Cristiano Ronaldo aqui é de eles fazerem vénias. Podem não saber onde é Portugal, muitos deles têm de questionar onde é mas quando se fala em Ronaldo toda a gente identifica a personagem e reconhece que é dos melhores jogadores do mundo e falam muito disso.

Leonel Pontes no Shanghai Shenhua (DR)

— Voltando ao seu trabalho no Shanghai Shenhua, identifica potencial no jogador chinês?

— O jogador chinês tem muita habilidade técnica, porque faz parte daquilo que é a cultura chinesa de repetição e do trabalho individual, mas tem grandes dificuldades no trabalho coletivo e para desenvolver isso todos os treinadores têm de abrir a mente para o trabalho de ligação entre jogadores. Há aqui margem de crescimento mas não pode partir só dos clubes, tem de partir, também, da organização da federação de cima para baixo de forma a potenciar as capacidades individuais dos jogadores. Há bons valores, muitos deles apresentam grande talento entre os 13 e os 16 anos, mas, curiosamente, muitos deles desaparecem a partir dessa idade e isto é uma incógnita. A escola e o ensino são uma barreira muito grande, pelo menos em Xangai, porque o nível cultural é muito elevado e os pais preocupam-se muito mais com a educação do que com a prática desportiva, principalmente no futebol do qual há uma imagem de alguma corrupção, de um conjunto de problemas que o governo tem tentado limpar. E se formos ver na história recente, há muitos presidentes e diretores desportivos presos por conta de sinais de corrupção que foram visíveis. Hoje as coisas estão melhores e acredito que nos próximos anos o futebol chinês pode vir novamente a crescer, à semelhança do que aconteceu há uns anos. Há potencial, há qualidade individual, falta um trabalho de fundo, principalmente do ponto de vista coletivo.

— A China pode vir a ser uma potência do futebol mundial, como era anunciado há uns anos?

— Pode porque a China já colocou homens na Lua, portanto, é uma sociedade altamente evoluída, um país gigante. Xangai é uma amostra pequena apesar dos seus cerca de 30 milhões de habitantes. É uma cidade evoluída, organizada, muito segura, multicultural, é uma capital económica onde estão centradas grandes empresas nacionais e multinacionais e se eles são capazes de fazer crescer várias áreas de conhecimento também poderão fazer crescer o futebol. Falta um pouco a base que é fundamental, entre os cinco e os 12 anos. Há excelentes condições para praticar porque as federações e as associações criaram espaços para o fazer. Depois falta método e organização naquilo que é a fase de crescimento dos jogadores, das instituições e adequar aquilo que é o futebol de alto nível à China porque têm uma cultura muito própria. É um país muito grande, o que cria dificuldades na deslocação das equipas e na organização dos calendários mas, provavelmente, a China não pode ser vista numa dimensão global mas deve ser organizada nas suas dimensões mais de distrito, ou seja, como nós fazemos em Portugal, porque aqui qualquer jogo que tenha de ser feito obriga a viajar duas, três, quatro horas. Ainda há pouco tempo fui observar um campeonato de sub-21 e tive de viajar 3.30 horas de avião e isso são custos muito grandes para a organização do futebol.

— Mas vão voltar a apostar forte na Liga chinesa, como aconteceu há uns anos, quando teve vários jogadores de nomeada? 

— Aqui há um sistema de grandes empresas que se ocupam de financiar os clubes. O futebol não tem retorno financeiro; não há vendas de jogadores, os clubes têm dificuldade em se autossustentar e, portanto, acabam muitas empresas por investir muitos milhões mas acabam por desistir desse investimento e há clubes capazes de ganhar o campeonato e no ano seguinte descem de divisão ou fecham portas e isso está a acontecer. Há uns mais sustentados que têm capacidade financeira e outros dependem de empresas patrocinadoras, o que se reflete nalguma instabilidade e insegurança. No fundo, o futebol chinês precisa de estabilidade, de aposta no jovem jogador de forma a que este possa vir a crescer e criar sustentabilidade interna. E precisa que os clubes tenham capacidade para se autossustentar.