Nandinho, treinador do Al Muharraq e campeão do Bahrein (Foto: André Carvalho)

«A polícia mandava-nos parar, via que falávamos inglês e mandava-nos seguir»

Nandinho, treinador no Bahrein e na Arábia Saudita, conta a A BOLA as principais diferenças culturais de um país para o outro

Nandinho sagrou-se campeão ao serviço do Al Muharraq, seis meses depois de ter rumado à Arábia Saudita. Em entrevista a A BOLA, explica quais as maiores diferenças entre os dois países, sendo a maior o facto de, em terras sauditas, haver pouca gente a falar inglês.

Como é que é a cultura do Bahrein, sentiu um pouco o choque cultural?

— Eu conheci duas realidades distintas. O Bahrein é um país do Médio Oriente, mas que se aproxima à cultura ocidental. Pelo facto de metade da população ser estrangeira, desde logo faz que seja um país diferente dos que estão ali ao redor. À exceção dos Emirados, na zona do Dubai, que é a zona onde maioritariamente existem estrangeiros, o Bahrein é um país pequeno, com metade da população estrangeira. Há, e temos de nos adaptar à cultura deles, porque existem os xiitas, existem os sunitas, como em todos os países ali do Médio Oriente, mas é uma cultura muito mais aberta relativamente, por exemplo, à Arábia Saudita, onde eu estive. É uma cultura mais tradicional, à exceção de Riyad, Jeddah e Kobar, que são as três grandes cidades da Arábia Saudita, que já vão tendo e demonstrando alguma abertura. Já se vêem, por exemplo, as senhoras com a cara destapada. Onde eu estava não, ainda é uma província muito tradicional onde as mulheres não tiram o hijab, mas no Bahrein já se vê as mulheres árabes com a cara destapada. É um país onde, por exemplo, é permitido o álcool, desde que sejam em locais próprios onde se vende álcool. Na Arábia Saudita e nos países ali à volta não é permitido o álcool, e por isso há uma maior abertura, respeitando na mesma as tradições e a cultura que eles têm, sobretudo em termos religiosos, porque continuam a haver as rezas entre xiitas e sunitas — uns rezam cinco vezes por dia, outros rezam três vezes —  e nós temos de respeitar essas regras e os horários.

Como é que faz essa adaptação em termos de treino, por exemplo?

—Temos de colocar os treinos sempre após as rezas, ou se a reza é durante o treino, colocar de uma forma que seja para o final do treino, porque eles podem adiar por 15 minutos. Há esse cuidado de sabermos a que horas é que eles rezam. Vai mudando sempre, consoante o pôr do sol, e nós vamo-nos adaptando. Mas já existe alguma flexibilidade, porque há jogadores que às vezes não conseguem rezar à hora que têm de rezar e rezam um bocadinho mais tarde. O importante é que eles cumpram a reza e o número de vezes que têm de a efetuar, para que não haja problemas. Em termos de alimentação, há restaurantes de todo o mundo. Comida mediterrânea, comida oriental, há supermercados que vendem de tudo, produtos que temos cá também existem lá, por isso não foi difícil. Na Arábia Saudita também não foi muito difícil, porque também já existem vários tipos de restaurantes que servem a nossa alimentação, a comida mais mediterrânica, alimentos mais mediterrânicos. Em termos de cultura, isso sim, mais radical na Arábia do que no Bahrein, porque o Bahrein, como eu disse, é o país do Médio Oriente mais ocidentalizado, que se pode encontrar.

E como funciona em termos de trabalho?

— Vivenciei duas realidades diferentes. Na época passada, o Al Ahli era um clube muito desorganizado, jogadores semi-profissionais, alguns não apareciam aos treinos, nem nos informavam, porque tinham questões familiares, alguns não vinham porque trabalhavam. E fomos gerindo da melhor maneira. Claro que não é fácil, tentando travar sempre estas lutas para que os jogadores tentassem ser profissionais ao máximo, mas não era fácil, porque, o futebol não era o principal sustento de alguns e era mais difícil. Na Arábia Saudita e agora no Al Muharraq é diferente. Encontrei estruturas superorganizadas, muito profissionais e isso facilita o nosso trabalho. Tive de me focar apenas no meu trabalho de treinador, ao contrário da época anterior, em que era treinador, dirigente, tinha de fazer vários papéis.

Nem sequer um massagista nós tínhamos no treino, portanto, se acontecesse alguma coisa a um jogador, estava por nossa conta. Por outro lado, quer no Al Bukayriyah, quer no Al Muharraq, sim, temos sempre médicos, fisioterapeutas, massagistas à nossa disposição, connosco no terreno. Desde logo se vê a diferença que há e responde ao porquê de eu não ter ficado o ano passado no Al Ahli. Existe realmente uma diferença muito grande em termos de organização das equipas.

Sente-se que há, por parte de alguns dirigentes no mundo árabe, alguma impaciência para com os treinadores. Sentiu isso?

— Eu, felizmente, nos clubes onde estive, nunca senti nada disso. Estive sempre à vontade a fazer o meu trabalho, nunca tive interferências de ninguém. As pessoas acreditavam muito na nossa forma de trabalhar, porque chegámos lá e, como eu disse, mudámos um bocadinho, sobretudo na Arábia Saudita, a forma de trabalhar. E eles tinham um treinador francês, um treinador já com alguma idade também, com outra escola, com uma escola diferente, não melhor nem pior, mas que trabalhava de forma diferente de nós portugueses. E a aceitação e o impacto que tivemos foi muito, muito positivo. Os jogadores gostaram imenso da nossa forma de trabalhar. Organizámos ginásio, trocámos máquinas, sempre com uma abertura e uma disponibilidade tremenda por parte dos dirigentes, em darem-nos todas as ferramentas que nós necessitássemos. O mesmo se passou quando me mudei para o Al Muharraq, tive tudo aquilo que quis e que pedi. Isso facilita muito o nosso trabalho. Posso dizer que trabalhei no Almería e que o dono do clube e a direção tentaram insurgir-se no nosso trabalho. E isso acaba por dificultar. Temos de ter jogo de cintura para trazer os dirigentes para o nosso lado, fazê-los compreender o porquê de trabalharmos assim, o porquê de tomarmos estas decisões, sem querer ir contra eles e ser radicais, mas ter esse jogo de cintura de os saber trazer para o nosso lado. Eu não precisei disso, felizmente, porque as direções sempre me deram total liberdade para trabalhar, nunca se intermeteu no meu trabalho, e isso facilita muito.

Como foi viver nessa zona menos desenvolvida da Arábia Saudita?

— A maior dificuldade que encontrei na Arábia Saudita é que a maioria deles não fala inglês e não se esforçam sequer por te entender. Por exemplo: íamos na estrada e havia muitas operações stop, sobretudo à noite, mesmo dentro da vila. Eles mandavam parar os carros, quando nos paravam a nós, começavam a falar, nós dizíamos «English please», e eles mandavam-nos logo seguir, porque não sabiam falar. Então, para não estarem ali a perder tempo, mandavam-nos seguir. Existe essa dificuldade, a maioria dos árabes não falam inglês, e os que falam, falam muito pouco e mal, por isso é importante ter um tradutor. No Bahrein eu não preciso disso, porque a maioria deles falam, tirando um ou outro jogador que não fala inglês, mas os nativos lá falam todos inglês e traduziam para esses dois. Isso já é uma grande diferença, porque a mensagem chega diretamente ao jogador, ali havia um interlocutor pelo meio para passar a mensagem.