Arbitragem, credibilidade e transparência
Dificilmente podia ter terminado pior a época desportiva de 2024/25 para a arbitragem do futebol português, porque as últimas imagens são sempre as que mais perduram. Luís Godinho e Tiago Martins não estiveram à altura da final da Taça de Portugal, o primeiro sobretudo pela dualidade aplicada nas decisões, onde teve um critério mais largo para o Sporting e mais estreito para o Benfica, nos duelos entre áreas; o segundo especialmente pelo lance que deveria ter resultado na expulsão de Matheus Reis no minuto 90+5. Tiveram influência no desfecho do jogo e nada pode ser mais negativo para uma arbitragem. Durante a crónica do Benfica-Sporting, que assinei, não referi o trabalho do árbitro e do VAR, missão cumprida com eficácia e competência por Pedro Henriques, umas páginas à frente, de acordo com o formato que A BOLA assume, onde é ao especialista de arbitragem que cumpre avaliar o desempenho, lance a lance, e dar a nota final (neste caso foi, obviamente, negativa, um quatro num máximo de dez).
Luciano Gonçalves
Mas o que me faz regressar ao tema, tendo a ver com Luís Godinho e Tiago Martins, tem sobretudo a ver com Luciano Gonçalves, presidente do Conselho de Arbitragem (CA) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), por tratar-se de um momento definidor. Em funções há escassos meses, Luciano Gonçalves, que ainda estará a conhecer o chão que pisa, teve algumas nomeações de risco desnecessário, para jogos com equipas que jogavam para o título, de árbitros que, manifestamente não estavam preparados para o efeito, sendo o caso mais flagrante o de Carlos Macedo, no Benfica,6-AVS,0, que sem controlar o jogo, andou sempre atrás dele. Não foi esse o caso da escolha da dupla Luís Godinho/Tiago Martins, o primeiro tido como o segundo melhor árbitro português da atualidade, atrás de João Pinheiro, e o segundo o melhor VAR nacional, o que coloca no ‘day after’, uma pressão ainda maior sobre o presidente do CA. E porquê, se a nomeação foi acertada? Porque o mau trabalho dos árbitros (consagrados) vai funcionar como prova de fogo para Luciano Gonçalves. Expliquemos:
Luciano Gonçalves chegou à liderança do CA da FPF vindo da presidência da APAF, que não é mais do que a organização de classe dos árbitros, vulgo sindicato. Como figura máxima da APAF, era obrigação de Luciano Gonçalves ser parcial, na defesa dos seus associados, porque é para isso que os sindicatos servem. Com mais ou menos razão (e às vezes sem nenhuma...), a APAF de Luciano Gonçalves sempre primou pela defesa intransigente dos árbitros, face, por exemplo, às críticas feitas pelos clubes, que depois eram remetidas, em forma de queixa, para as instâncias disciplinares federativas. Pode dizer-se, nesta perspetiva, que Luciano Gonçalves foi um bom presidente da APAF, e que os árbitros lhe devem estar gratos pela forma empenhada como foram, por ele, defendidos.
A APAF e o CA
Porém, ao chegar à presidência do CA da FPF, a atitude de Luciano Gonçalves face aos árbitros tem, necessariamente, de ser outra, porque a sua missão deixou de ser a de defendê-los (a árvore), e passar a defender a arbitragem (a floresta).
Defender a arbitragem é, entre outras atividades que passam também pelo desenvolvimento do setor, que não dará um salto qualitativo se não tiver uma base de recrutamento maior, criar um clima de transparência que afaste as suspeitas dos vários agentes – jogadores, treinadores, dirigentes e adeptos – e mostre que há um efeito causa/consequência entre o que os árbitros produzem dentro do campo, ou na Cidade do Futebol, e a forma como são avaliados. Se a norma for a opacidade, nada melhorará substancialmente, e os esforços feitos no sentido da abertura por Fontelas Gomes, especialmente no seu último mandato à frente do CA da FPF, terão sido vãos.
Ora, tudo isto remete-nos para a final da Taça de Portugal e para Luís Godinho e Tiago Martins. Perante o sucedido, ou o CA da FPF dá públicas explicações, ou, melhor ainda, deixa que os árbitros se expliquem, nem que seja para lamentarem os erros, e transforma este fim de festa de 2024/25, que tem potencial para inquinar a imagem federativa, num ato de humildade e sobretudo pedagogia, ou estaremos a regredir e a ficar mais longe dos fundamentos que sustentam uma nova fórmula de gestão dos árbitros, segundo os modelos alemão e inglês. É bom que Luciano Gonçalves tenha consciência da delicadeza do momento que a arbitragem atravessa.
Coragem de dar a cara
Sejamos generosos e deixemos, até, de parte, o caso de Luís Godinho e a dualidade de critérios que revelou, e foquemo-nos apenas em Tiago Martins e no minuto 90+5. Se ninguém, da arbitragem, vier a terreiro não só explicar o que se passou na Cidade do Futebol, como ainda revelar a nota que foi atribuída a esse árbitro internacional, estará a ser dada uma machadada na credibilidade do nosso futebol. Estar-se-á a abrir, desnecessariamente, portas à especulação e a cenários que em nada dignificam a arbitragem, porque estamos perante um caso limite, em que não há quem perceba como não houve intervenção do VAR, perante a clareza cristalina das imagens.
Depois de ter falado em transparência, falei agora em credibilidade, dois pilares em que deve assentar, aos olhos da opinião pública, o edifício da arbitragem. Se Luciano Gonçalves, neste início de mandato, quiser ser credível, terá de mudar o chip, e não cair na tentação de continuar a ser o presidente do sindicato dos árbitros. E só o fará se houver notícia, tornada pública, das notas atribuídas à dupla que teve uma tarde para esquecer no Jamor. Por outro lado, o ex-líder da APF tem uma oportunidade de ouro para alavancar a transparência, dando palco especialmente a Tiago Martins para dizer de sua justiça, ou seja, quais as razões técnicas que o levaram a não intervir no aludido lance. Só através da transparência haverá credibilidade, só através da credibilidade e da transparência o CA da FPF estará a defender a arbitragem e não, corporativamente, os árbitros. Estamos em 2025 e os procedimentos não podem ser os de 1925. A sociedade da tecnologia trouxe-nos o VAR, e é essa possibilidade de se julgar sem a desculpa de «não ter visto», que aliás, pode aplicar-se a Luís Godinho no supracitado lance, que só fará sentido se for explicada a quem viu exatamente o mesmo que Tiago Martins e ficou perplexo (no mínimo) pela omissão verificada. Dar a cara nesta situação – e isto é especialmente válido para Luciano Gonçalves e Tiago Martins – será sempre uma demonstração de caráter, coragem e consciência impoluta, e nunca o seu contrário.