SER CAPITÃO: o exemplo Jorge Costa
Nunca vi ninguém olhar nem falar do Jorge Costa sem um certo respeito instintivo. Havia algo no olhar, na postura, na forma como entrava no relvado, num balneário ou numa sala - como quem já tinha aguentado o mundo às costas. Jorge Costa era isso: a imagem crua de quem trinca a língua, cerra os dentes e engole o medo. Não era perfeito - e ainda bem. Porque a perfeição não comanda balneários, não levanta taças, não ensina os mais novos a crescer com coragem. A perfeição é fria. O Jorge era quente, intenso, inteiro. Era dos que iam à frente quando o terreno tremia. Dos que levavam o corpo à frente da dúvida. Dos que davam o exemplo mesmo quando tudo parecia contra. Não por obrigação mas por natureza.
O Jorge Costa tombou. E isso… isso é assustador. Na semana em que nos despedimos do Jorge, a vida - essa velha adversária tantas vezes dura, tantas vezes imprevisível - lembra-nos que, apesar de tudo, continua. O mundo não pára. Não deixa de girar. Mas hoje, neste preciso instante, há um silêncio que se impõe. Um vazio que não se preenche com estatísticas nem com recordações técnicas. Porque o Jorge Costa não era apenas um jogador, nem apenas um treinador ou um dirigente. Era um símbolo. Um Capitão. E há símbolos que, mesmo quando caem, continuam a comandar e a indicar o caminho.
No futebol, há líderes que passam. E há líderes que ficam - cravados na pele dos clubes, tatuados na memória dos adeptos. Jorge Costa é um desses. Capitão de alma e corpo inteiro, símbolo de uma era, espelho de um clube e de uma cidade. No FC Porto, o número 2 não era apenas um defesa: era o capitão. O Bicho.
Chamavam-lhe assim - Bicho - porque jogava com a alma rasgada, com uma fúria competitiva que assustava adversários e inspirava colegas. Não era só garra. Era instinto, inteligência tática, leitura de jogo, e acima de tudo, uma liderança crua, frontal, muitas vezes silenciosa, mas sempre presente. Era o primeiro a chegar ao lance dividido, o último a desistir de um duelo, o tipo de jogador que um adversário odiava enfrentar… mas respeitava profundamente.
José Mourinho, que o treinou no FC Porto campeão europeu, disse-o de forma clara: Jorge Costa foi o líder do balneário mais forte que tive. Quando ele falava, todos ouviam. E quando ele não falava… sentia-se na mesma.
Mas foi mais longe, ao recordar um episódio que diz tudo sobre a liderança natural do capitão: Um dia estávamos a perder 1-0 com o Belenenses, ao intervalo. Eu ia para o balneário a fumegar, como toda a gente percebeu. O Jorge Costa veio ter comigo e disse-me para esperar dois minutos cá fora. Ele entrou, fechou a porta e fez o trabalho sujo por mim. Ouvia-se ele a dar uma dura à equipa. Depois abriu a porta e disse: ‘Dê-nos instruções’. Ele fez tudo o que eu faria. Ganhámos 1-3. Ele era central, nunca marcava golos, e nesse jogo marcou dois.
Esta história de balneário não surpreende quem o conheceu por dentro. Jorge Costa liderava com os olhos, com o peito aberto, com um sentido de missão que ia muito além das quatro linhas. Foi capitão durante mais de uma década, numa altura em que o FC Porto vivia mudanças profundas: novos jogadores, diferentes treinadores, desafios nacionais e internacionais. Mas havia uma constante: ele. Firme. Presente. Leal. Incansável.
Foi campeão nacional por oito vezes, venceu cinco Taças de Portugal, cinco Supertaças, uma Taça UEFA, uma Liga dos Campeões e um Mundial de Clubes. Não é qualquer jogador que entra neste restrito lote de campeões europeus e do mundo por clubes. Jorge Costa entrou. E com a braçadeira no braço. Mas os troféus não contam toda a história. Jorge Costa era o cimento emocional do grupo. Quando o clube mais precisou de estabilidade, ali estava ele. Quando se exigia identidade e carácter, o Bicho respondia com suor e silêncio.
Pinto da Costa, histórico presidente do FC Porto, foi direto: O Jorge Costa é o espelho da mística do FC Porto. Foi o capitão que todos os presidentes sonham ter.
E como se esquece o jogo da final de Sevilha? O FC Porto, liderado por Mourinho, enfrentava o Celtic na final da Taça UEFA. Jorge Costa jogou como sempre: com o coração no placar do resultado e a cabeça no jogo. Nunca foi o mais rápido. Mas posicionava-se como poucos. Sabia onde estar - e quando estar. Com ele, o FC Porto jogava com 12: a equipa e o seu capitão, o seu líder.
No livro Maniche 18, o antigo médio da seleção nacional traça um retrato marcante do que é ser capitão de equipa, elegendo Jorge Costa como o maior exemplo de liderança, entrega e espírito de grupo que conheceu em toda a sua carreira: Ao longo da minha carreira, tive a sorte de partilhar balneário com capitães lendários, mas nenhum me marcou tanto como Jorge Costa. Ser capitão não é um título, é uma forma de estar: exige carácter, carisma, liderança, capacidade de comunicação e, acima de tudo, uma entrega incondicional ao grupo. O Jorge era isso tudo e mais - era o elo entre jogadores, equipa técnica e direção, era o rosto da mística do FC Porto, era exemplo pelo que dizia, mas sobretudo pelo que fazia. Liderava com naturalidade, com presença, com comando. Inspirava fascínio e respeito, unia o grupo, protegia os seus e fazia de cada momento - no jogo ou no treino - um compromisso com a vitória. Era assertivo, direto, emotivo e incansável na defesa dos seus companheiros e do clube.
O Jorge Costa foi um verdadeiro comandante, um capitão que influenciava positivamente dentro e fora do campo. Sabia quando repreender, quando apoiar e quando resolver os problemas longe dos holofotes - sempre com o bem da equipa em primeiro lugar. Era respeitado porque era seguido, e era seguido porque representava a voz do balneário, da cidade e do clube. No FC Porto, com ele ao leme, vivemos conquistas épicas e superámos momentos difíceis. Cada palavra, gesto ou atitude dele transpirava liderança. É por isso que, nas experiências que tive como capitão, em clubes e na seleção, a referência que sempre me guiou foi ele: o Jorge Costa, o Bicho, o Tanque. Um capitão como poucos. O capitão que todos deviam querer ser.
No momento do adeus, as palavras de quem partilhou a trincheira com Jorge Costa ajudam-nos a compreender a dimensão do homem por trás do capitão. Sérgio Conceição, seu companheiro de tantas batalhas, escreveu com a alma: Fizemo-nos homens mais depressa, prescindimos dos devaneios de juventude para cumprir o sonho de sermos profissionais de futebol. Caminhámos juntos no FC Porto, no Standard Liège, na Seleção. Conquistámos títulos, partilhámos a fúria pela vitória, rimos muito, chorámos às vezes… e assim se construiu uma amizade para a vida. Foste o maior amigo que tive no futebol. Quem contigo privou sabe que do teu coração brotava tanta bondade como vontade de ganhar. Descansa em paz, Jorge. És e serás sempre o Bicho. O capitão que nunca se rendeu.
Vítor Baía também o disse com dor e verdade: O futebol perdeu um dos seus maiores guerreiros. Eu perdi um capitão. Um amigo. Jorge Costa não era apenas o líder dentro de campo - era a alma do balneário, o exemplo de coragem, entrega e amor à camisola. Foste o meu capitão durante anos, mas acima de tudo foste sempre um amigo verdadeiro, presente nos bons e nos maus momentos. A tua voz firme, o teu olhar determinado, o teu abraço depois de cada vitória… ficam gravados para sempre. O mundo do futebol nunca estará completo sem ti. Mas a tua memória viverá em cada título conquistado, em cada história contada, em cada coração que tocaste com a tua força e generosidade.
Jorge Costa deu tudo. E é por isso que não foi apenas mais um. Foi o Capitão. Com C maiúsculo. O Bicho que rugia por dentro e comandava por fora. No FC Porto - e no futebol - há quem passe pela história. Jorge Costa é a história e tal como ele disse um dia: Aconteça o que acontecer, farei parte da história do meu clube.
E faz. Não faz só parte da história do FC Porto. Faz parte da história do futebol português. E faz parte da história do desporto nacional.
Porque há jogadores que inspiram. E há capitães que ficam para sempre.
O Jorge Costa é eterno. Descansa em paz, Capitão.
«Liderar no Jogo» é a coluna de opinião em abola.pt de Tiago Guadalupe, autor dos livros «Liderator - a Excelência no Desporto», «Maniche 18», «SER Treinador, a conceção de Joel Rocha no futsal», «To be a Coach» e «Organizar para Ganhar» e ainda speaker.