Jogar num país em guerra: «Ouvi um estrondo e depois percebi que fomos atacados»
Destino Aventura é a rubrica em que A BOLA dá a conhecer jogadores e treinadores espalhados pelos cantos mais remotos do mundo.
Há quase três anos que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia começou. Ainda assim, o futebol ucraniano não pára. Em conversa com A BOLA, Miguel Campos e Jota Pereira, dois jogadores portugueses do Oleksandriya, contaram a experiência de jogar num país em guerra, em que os alarmes passaram a ser habituais e os encontros chegam a demorar quatro a cinco horas, devido a ataques.
- Como surgiu esta oportunidade de ir para a Ucrânia?
Miguel Campos: Na altura, o meu empresário já tinha tido um jogador que tinha jogado aqui na Ucrânia, no Dnipro, antes da guerra. Ele tinha jogado com o meu treinador da altura e estavam a precisar de um central aqui no clube, comunicaram-se e perguntaram sobre mim. Como já tinham uma amizade e uma boa relação profissional, havia confiança, deram boas indicações. O clube fez-me uma proposta, pagou cerca de 100 mil dólares [86 mil euros], deixaram-me sair e vim para cá. Foi uma boa proposta do ponto de vista financeiro.
- Foi uma decisão rápida ou tiveste de ponderar o contexto?
Miguel Campos: Não foi nada fácil. Foi complicado. Na altura, tinha só três, quatro meses de relação com a minha namorada, agora minha esposa. Ela não queria que eu viesse, chorou, ligou aos meus pais, amigos…. Fez tudo para que eu não viesse. Mas, depois, comuniquei com as pessoas do clube, garantiram-me que havia condições de segurança, já havia outros estrangeiros aqui, falei com eles também, e tem-se confirmado que não há grandes questões de segurança, felizmente. Tenho estado bem.
- Jota, primeira experiência no estrangeiro, logo na Ucrânia, depois de uma boa época na Sanjoanense, como foi a decisão?
Jota Pereira: Foi quase como o Miguel. O interesse do Oleksandriya surgiu em janeiro e aceitei logo. Mas a Sanjoanense não deixou, e ainda bem. Consegui fazer uma segunda volta do campeonato muito melhor do que a primeira. No final da época, o interesse voltou mais forte. Falei com a minha família, que não gostou da ideia por causa do que se ouve, do que se fala, mas contactei o Miguel, ele explicou tudo, deixou-me tranquilo e vim.
- Como foi a adaptação à realidade de jogar num país em guerra?
Miguel Campos: Sem dúvida, diferente. Quando soa o alarme durante o jogo, temos de recolher para o balneário, esperar que passe e voltar a entrar em campo. É complicado. Perde-se a concentração, fica-se com dores musculares, é mais complicado voltar a 100% ao jogo. Dificulta, mas é para as duas equipas, então não serve de desculpa. É uma realidade muito diferente.
Jota Pereira: É um caso de hábito. Lembro-me que no segundo treino que fiz aqui, comecei a treinar e, de repente, soaram os alarmes. Comecei a olhar para o céu, assustado. Pensei que ia tudo embora. Não. O treino continuou, todos tranquilos. Pensei: 'O que é isto?' Mas com o tempo, vamos nos habituando.
- Já tiveram algum susto?
Miguel Campos: Uma vez, fomos para Kiev, estávamos no quarto, antes de dormir, o Jota comentou que queria ter uma experiência. Disse-lhe para ter cuidado com o que deseja. Depois de manhã, acordou e disse que não conseguiu dormir, ouviu um estrondo à noite e não dormiu mais.
Jota Pereira: Fui à casa de banho, ouvi um grande estrondo, quando voltei não conseguia dormir. De manhã, percebi que houve ataques em Kiev mesmo.
- Como é Alexandria, a cidade onde vivem?
Miguel Campos: É uma cidade pequena, não se passa nada, não tem indústria ou ponto estratégico militar relevante. Muita gente ucraniana migrou para cá, noto mais movimento agora do que quando vim para cá. Também por alguma estabilidade e segurança, até para as famílias. Há zonas mais complicadas.
- Como está o futebol ucraniano?
Miguel Campos: Suponho que não tem a afluência que tinha antes, principalmente, porque os homens eram os mais aficionados. Ainda assim, jogámos recentemente contra o Dynamo Kiev e o estádio estava quase cheio. Muitos apoiam o futebol, funciona como afirmação da normalidade no país. É uma forma de dizerem: ‘Apesar de nos estarem a atacar, conseguimos sobreviver e funcionar como uma sociedade normal.’
- Ainda há limitações na lotação dos estádios?
Miguel Campos: Ainda é limitada, depende dos jogos, pode ser até máximo de 60%. Não há bunkers para as pessoas que vão assistir, se soa alarme as pessoas saem do estádio, ordeiramente, nós é que vamos para os balneários que são mais resguardados.
- Os jogos chegam a demorar quanto tempo quando é suspensos pelos alarmes?
Jota Pereira: Por vezes, demoram quatro ou cinco horas.
- E qual é a sensação de voltarem ao campo?
Jota Pereira: Na primeira vez, foi estranho. Fiquei quatro horas no banco e nem ia aquecer. O alarme tocou, fomos para o balneário, ficámos lá 30 ou 40 minutos. Depois voltámos, eles aqueceram e voltaram a jogar. Foi estranho. A família a mandar mensagens a perguntar porque é que o jogo parou e eu: 'Calma, não se passa nada.'
- As famílias em Portugal ficam preocupadas?
Jota Pereira: No início sim, mas agora estão melhores.
Miguel Campos: Os meus pais e os da minha namorada estão mais tranquilos agora.
- E os vossos colegas ucranianos, como lidam com a situação?
Jota Pereira: Diria que nós, estrangeiros, estamos mais preocupados do que eles. Eles levam vida normal, até parece que não estão em guerra. Nós somos os mais preocupados.
Miguel Campos: Eles até brincam connosco. Quando ouvem os alarmes, começam a brincar e a meter medo. Muitos reúnem dinheiro para os militares e nós também ajudamos mensalmente nesse apoio.
- Quais são as outras dificuldades que enfrentam?
Miguel Campos: As viagens também são complicadas, estamos no centro da Ucrânia, demoramos 10 horas de autocarro para chegar ao aeroporto, para depois voltarmos para casa. Se vamos jogar a Lviv, são 14 horas de comboio, temos de ir dois dias antes.
Jota Pereira: Mas são as horas mais felizes da viagem!
Eu joguei nas distritais, cheguei a trabalhar no McDonald's para conseguir jogar futebol.
- Como é o vosso clube, o Oleksandriya?
Miguel Campos: É cumpridor, sempre cumpriram com tudo, dão boas condições de trabalho. Venho de realidades muito diferentes do Jota. O Jota jogou no V. Guimarães, na equipa profissional. Eu joguei nas distritais, cheguei a trabalhar no McDonald's para conseguir jogar futebol. Portanto, está ótimo para mim. Aqui tenho as melhores condições que já tive. Temos campos de treino, quartos, cantina, sala de vídeo.... Está excelente.
- Comparando com futebol em Portugal, quais as diferenças?
Miguel Campos: Em Portugal, há muito mais qualidade. Por alguma razão, vão buscar tantos jogadores portugueses. Aqui, na terceira divisão, os jogadores não têm qualidade. A nossa equipa B joga na terceira divisão, eu vejo os jogos e vejo que há muitos jogadores que não têm qualidade. Aqui não se vê ninguém a ultrapassar três, quatro jogadores e marcar um grande golo. É mais no ressalto, sobra, contra-ataque, chuta e golo. Na Croácia, senti que se trouxesse uns três ou quatro jogadores da Liga 3, faria melhor época do que fiz lá, mas nem sempre reconhecem qualidade quando vêm de patamar abaixo.
Jota Pereira: Acho que aqui é mais físico. No primeiro jogo a titular, contra o Obolon-Brovar, joguei bem com bola, mas perdi muitos duelos físicos. Em Portugal, até se podia dizer que fiz um bom jogo. Mas o treinador chamou-me à dela, mostrou-me os vídeos, disse que queria que fosse mais físico, que isto não era Portugal, e mostrou-me todos os duelos que perdi. Aqui é mais físico, muito duelo, muita intensidade.
- Diferenças entre povo ucraniano e português?
Jota Pereira: Não encontro grandes diferenças, pensava que iam ser mais frios. Nós viemos pela Moldávia e eu não gostei. As pessoas eram frias. Mas na Ucrânia são pessoas amáveis, gostam de ajudar, tentam que nos sintamos confortáveis. Sinto uma semelhança com Portugal e com os portugueses.
Miguel Campos: Concordo, mas do ponto de vista cultural, económico e social é diferente. Aqui, vivem com ordenados mínimos de 200 euros, o que para nós seria impensável. São pessoas humildes, afáveis, as senhoras do clube são quase como avós, gostam de nos dar comida, são muito hospitaleiras. Recebem bem os estrangeiros. Adotam-nos quase como ou netos, especialmente os mais novos. São muito humildades. Às vezes, passo-me com os taxistas, que são meio malucos a conduzir, mas de resto, são pessoas humildes.
- Prespetivas para esta época?
Jota: Coletivamente, gostava de ir às competições europeias, mas vai ser muito difícil, até tendo em conta a qualidade das outras equipas. Sendo assim, passa por fazer um campeonato tranquilo, ali a meio da tabela.
Miguel Campos: Primeira metade da tabela seria o objetivo. Até porque vendemos muitos jogadores, estamos com uma equipa jovem e querem potenciar jogadores. Querem desenvolver de novo uma ideia. Saiu um treinador, está a entrar outro agora, somos muitos estrangeiros, que nunca jogámos uns com os outros.... Tudo isto tem de conectar-se. Esta temporada tem sido mais complicada, então ficar na primeira metade da tabela seria ótimo.