A dobradinha da liberdade no Sporting-Benfica do tira-teimas
Tal como no ano passado, o Sporting, agora bicampeão nacional, vai tentar conquistar a dobradinha. Para que isso aconteça, a equipa de Rui Borges terá de vencer o Benfica, de Bruno Lage, na final da Taça de Portugal marcada para as 17h15 de hoje, no Estádio Nacional. Esta jornada, de enorme ansiedade para águias e leões, traz-nos à memória a dobradinha conquistada pelo Sporting em plena época da Revolução dos Cravos. Foi a 9 de junho de 1974: Sporting-Benfica (2-1, após prolongamento).
Dias antes, no Barreiro, o Sporting (de Mário Lino) tinha conquistado o título de campeão nacional, ao vencer o Barreirense (3-0) na última jornada. E dias depois, mesmo sem o goleador Yazalde, que já estava na Alemanha, integrado na seleção da Argentina, para o Mundial-1974, uma nova conquista, a Taça de Portugal, diante do rival Benfica (de Fernando Cabrita).
Numa tarde inesquecível de futebol e de… liberdade. Estávamos em pleno período revolucionário, com o povo livre na inconsciência de que podia fazer tudo. Extravasar alegrias e emoções. Sem limites. Porque as autoridades eram condescendentes. Era no tempo das multidões nos comícios partidários e das ruidosas mas pacíficas manifestações (políticas), com estádios e avenidas repletos de gente. Era a democracia estabelecida e a medrar, com as pessoas felizes e eufóricas pela mudança da situação.
Chico Faria foi o homem do jogo…
E naquele domingo lá estávamos, no topo sul, com os amigos, para assistir a este jogo. Muitos diziam que era um tira-teimas perante o campeão. Isto porque o Benfica havia vencido o Sporting nos dois jogos do campeonato (na Luz e em Alvalade)… e nem assim conquistou o tetra. O Benfica era o favorito e começou bem. Marcou primeiro, por Nené (31'), a concluir uma grande jogada de Rui Jordão. Porém, com a entrada de Chico Faria (73'), o Sporting viria a dar a volta ao resultado. O Chico foi o homem do jogo. Buliçoso, foi dele o golo do empate (89'), quando já ninguém acreditava, obrigando ao prolongamento e renovando a crença dos leões. E foi dele o excelente lance individual, passando por Humberto Coelho, em velocidade, e isolando Marinho para fazer o golo decisivo (107'), na cara do guarda-redes Bento.
Ai que festa! Como bem recordo, a cada golo marcado correspondia uma invasão de campo pela malta que se encontrava na pista de atletismo, junto às linhas laterais e balizas. Era a liberdade do 25 de Abril no seu melhor. Centenas de pessoas a correr, eufóricas, para festejar com os jogadores. Eram os elementos da PSP e da Polícia Militar a entrar no campo para, calmamente, de forma pacífica e amigável, convencerem os invasores a sair do relvado. Entretanto, sempre decorriam alguns minutos até estar tudo em ordem para o árbitro (César Correia, de Faro) reiniciar o jogo. Este, no final, mostrou-se algo crítico com a situação. «O público à volta do retângulo de jogo é questão que tem de ser olhada muito a sério pelas entidades oficiais. Porque nas condições em que se jogou no segundo tempo e prolongamento, torna-se difícil para todos. Não fui agredido por acaso. Mas com o público em cima, daquela maneira, nunca mais», afirmou.
Chico entrou, marcou, assistiu e foi expulso
Também o capitão do Benfica, António Simões, mostrou o seu desagrado: «Parece que se exagera com a questão de liberdade. Há que saber merecê-la. Entra-se em campo por dá cá aquela palha. Estraga-se o espetáculo e fica em causa a integridade física. A liberdade não se identifica com falta de educação. Mas o futebol tem destas coisas. E é ingrato. Um jogo em que Benfica não teve problemas durante 88 minutos, pensava que tinha o jogo na mão, e depois, sem o merecer, acabou por perder a taça. O Sporting foi feliz.»
Quase ninguém se lembra mas o Chico Faria acabaria por ser expulso a poucos minutos do fim. César Correia, o árbitro, explicou: «Fui forçado a mostrar cartões amarelos ao Dé, Artur e Jordão. E o encarnado [então? Já se podia dizer vermelho!] ao Chico, por agressão a Simões». No entanto, o próprio Simões, com dignidade, desportivismo e o fair play que sempre o caraterizou, deu a sua versão de um momento comum no futebol: «O Chico foi mal expulso. O Humberto ia marcar uma falta e o Chico atirou a bola para longe. Eu reagi, o Chico também. Mas não era caso para expulsão.»
Já do lado do Sporting a euforia deu azo a umas bicadas. Por exemplo, Baltasar: «Queriam jogo do tira-teimas? Afinal, demos uma de avanço à equipa do tira-teimas.» E Joaquim Dinis: «Fomos superiores. Vencemos bem. Mas quero dar os parabéns a Simões e Vítor Baptista, que disseram que nos ofereceram o campeonato numa bandeja… os jogos ganham-se no campo, não a falar…»
No final, o capitão Vítor Damas subiu à tribuna de honra para receber a taça das mãos do General António Spínola, o Presidente da República, figura da revolução. Notada foi a ausência do capitão do Benfica, António Simões, lá no alto da tribuna, ao lado de Damas. A explicação logo surgiu: «Não foi por o Benfica ter perdido que não fui lá acima. Naquele pandemónio era impossível lá chegar. Bem vê, perante a multidão descontrolada tudo pode acontecer…»
Isto foi há meio século! Ah! Caso curioso, o saudoso Osvaldo Silva, treinador adjunto, foi quem orientou a equipa do Sporting porque, horas antes, o campeão, Mário Lino, foi despedido pelo presidente João Rocha. Coisas do futebol!
Cinco finais seguidas com Fernando Vaz e Mário Lino
Neste período de Fernando Vaz e Mário Lino, o Sporting esteve em cinco finais consecutivas: 1970 — Benfica-Sporting, 3-1 (dia seguinte à minha chegada da Guerra Colonial, no navio Vera Cruz); 1971 — Sporting-Benfica, 4-1 (grande exibição de Dinis e Chico Faria); 1972 — Benfica-Sporting, 3-2 (a.p., com três golos de Eusébio); 1973 — Sporting-V. Setúbal, 3-2 (último jogo de Hilário, a levantar a taça, após 15 épocas e 494 jogos com a listada verde/branca. A propósito, refira-se que Hilário conquistou três campeonatos nacionais, três Taças de Portugal e uma Taça das Taças da Europa. E foi considerado o melhor defesa esquerdo do mundo, em 1966). Titularíssimo da equipa dos Magriços, terceira classificada no Mundial-66, fez parte do melhor onze dessa prova. Jogou na seleção da Europa e na do Resto do Mundo. É, portanto, a maior figura viva do futebol leonino; 1974 — Sporting-Benfica, 2-1 (a.p.), o tal jogo da dobradinha da liberdade. Curiosamente, registem que houve quatro leões que jogaram em todas as cinco finais: Vítor Damas, Marinho, Nelson Fernandes e Joaquim Dinis. Grandes campeões!
No ano passado escrevi aqui que ao longo da vida sempre fui freguês habitual das finais da Taça de Portugal. Como adepto e como jornalista foram cinquenta vezes no Jamor. Mas agora há vários anos que não vou presenciar essa grande festa popular. Já não tenho idade para grandes emoções e para grandes confusões. Ficarei em casa a ver na televisão. Só desejo que seja uma festa bonita de convívio e camaradagem entre rivais. Que haja respeito e fair play. No relvado e nas bancadas. Viva o futebol!