CRÓNICAS DE UM MUNDO NOVO Os cavalos também se abatem (artigo de José Manuel Delgado)
O diário desportivo madrileno Marca, na sua edição em papel de hoje, apresenta, na página 22, um excelente trabalho, que nos remete para uma realidade distópica, digna de um filme de série B de enquadramento pós-apocalítico.
A história é esta: Com o desporto praticamente parado, alguns nichos subsistem e vão alimentando, exaustivamente, o mercado das apostas. Além do recurso aos eSports (que não são a mesma coisa…) as competições de futebol que continuam a decorrer na Bielorrússia e na Nicarágua (primeiras categorias, reservas, feminino, tudo o que mexer) têm sido um recurso raro e precioso, chupado por empresas e apostadores, até ao tutano.
Por exemplo, entrando no site da empresa russa, com sede em Chipre, Fonbet, verifico que, para o jogo da Taça da Bielorrússia entre o Slavia Mozyr e o Bate Borisov é possível, apostar, sim ou não, nas seguintes circunstâncias: Qualquer dos guarda-redes toca na bola no primeiro minuto? Ambos os guarda-redes tocam na bola nos primeiros três minutos? O massagista entra em campo? O massagista entra em campo duas ou mais vezes? Há um lançamento lateral no primeiro minuto? Há uma falta nos primeiros três minutos? Há um golo invalidado? Há um golo de cabeça? Há um golo marcado de fora da grande área? E seguem-se mais 15 possibilidades de aposta quanto a marcadores de golos. Este processo é repetido para o outro jogo da Taça da Bielorrússia, o Dínamo Brest contra o Shakter Soligorsk e estão em menu, sem tanta oferta diversificada, os cinco jogos do campeonato de Clausura da Nicarágua.
Mas o futebol é apenas o aperitivo.
A Fonbet permite apostar em jogos de ténis de mesa, disputados por jogadores russos de gama média baixa, que recebem por jogo, e geram um fluxo de apostas ‘around the clock’. Criaram, para o efeito, uma chamada Liga Pro e só ao longo do dia de ontem, diz a Marca, disputaram-se quase 100 jogos. Para o volume de apostas, o facto de no ténis de mesa ser possível colocar apostas ponto a ponto, mata o vício de uns e enche os bolsos de outros, enquanto o mundo espera sentado por um regresso à normalidade.
Carlos Gonzalez, especialista de um associado do jornal Marca, a Marca Apuestas, revelou que «entre os dias 1 e 7 de abril foi possível apostar em 1.100 jogos de ténis de mesa, 646 jogos de eSports, 147 jogos de ténis e 130 jogos de futebol.»
Estes jogos em tempo de pandemia, que inevitavelmente, para alimentarem o negócio, comportam riscos para a saúde dos jogadores (qual ‘remake’, à escala das apostas, do livro de Horace McCoy, ‘Os cavalos também se abatem’, com versão cinematográfica assinada por Sidney Pollack, cuja ação decorre durante a Grande Depressão e gira em torno de uma maratona de dança, em que ganha o último par a ficar em pé), são uma caricatura do que está a ser gizado noutras modalidades, como as de combate, em que está a ser preparada uma ilha, com isolamento garantido do resto do planeta, onde os lutadores possam ir para a jaula alimentar não só o mundo das apostas, mas também as necessidades dos consumidores televisivos.
No futebol, o desporto mais popular e rentável do Mundo, são cada vez mais frequentes as tentativas de acelerar o processo de regresso à competição, vide o que o Bayern de Munique e outros emblemas alemães estão a fazer.
Mas, acima de tudo – e a FIFA apresentou ontem uma série de normas de bom senso e manifesta aplicabilidade – há que não queimar etapas e ter a sabedoria da serenidade e a virtude da resiliência. Como dizia ontem Marcelo Rebelo de Sousa, «se queremos ganhar a liberdade em maio, temos de a conquistar em abril.»