Um dérbi em tempos de cólera
Aursnes e Nuno Santos. Foto: IMAGO/AFLOSPORT

Um dérbi em tempos de cólera

OPINIÃO11.11.202310:06

Que venha o dérbi. É certo que, por ele, o mundo e o país não melhoram, mas sempre nos embeleza as vistas e nos areja a alma

Na obra prima do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, é o amor que triunfa em tempos de cólera. Dificilmente o futebol terá esse privilégio, mas ainda assim o futebol ganha, nestes tempos de guerras de dimensão mundial e de desassossegos sociais, uma importância objetiva pelo que constitui de escape a emoções e sentimentos que facilmente poderiam desaguar num mar de ódios, de intolerâncias para com os diferentes e das mais radicais formas de insensatez.

Em Portugal, o dérbi chega num contexto de inquietação e de espanto. Uma crise política profunda, que vem instaurar dúvidas e perplexidades, além de agravar problemas efetivos e reais da sociedade portuguesa, onde tenta sobreviver um povo centenariamente sofredor e que, perigosamente, começa a desconfiar da democracia, precisamente a apenas alguns meses da comemoração dos 50 anos do 25 de abril.

É este mesmo povo que assiste incrédulo e assustado à nova era das guerras em direto, com todo o seu rol de sofrimentos, de angústias e de tragédia.

Desconfiar é, hoje, a arma do povo. Desconfiar de políticos e de instituições, desconfiar da isenção da justiça e dos méritos do sistema educativo, duvidar da efetividade dos seus direitos cívicos e da proporcionalidade dos seus deveres e, sobretudo, duvidar do enxame de comentadores políticos que nos invadem a casa a qualquer hora, alguns dos quais, tão sectários e tão intelectualmente desonestos, que são capazes até de envergonhar, pelo despudor dos seus processos de manipulação mediática, os mais sectários dos comentadores desportivos, mesmo aqueles que nunca despem a camisola dos seus clubes.

Cresce, assim, a ideia de uma verdade de sentido único, conforme os interesses e as opiniões aceites como absolutas. Todos os que pensam diferente são inimigos descartáveis, apóstolos do mal, militantes do dessassosego. O mundo, e com ele os portugueses, radicaliza-se e brutaliza-se.

É neste cenário, que não se apresentará como exagerado, que um jogo apaixonante e impressivo, como é sempre um derbi, se torna de interesse nacional. Porque mesmo na fase em que possa despertar um forte sentimento de rivalidade, mantém os limites de um confronto apenas figurativo. Um jogo entre adversários, até pode ser meramente lúdico, mas é sempre a representatividade cénica de uma luta, de um combate.

Por isso, um jogo, como este Benfica-Sporting, torna-se num acontecimento nacional, que garante uma transversalidade de interesses que não se limita ao universo dos adeptos dos dois clubes.

Noutros tempos, a que o povo na sua sabedoria simples chamava os tempos da Outra Senhora estes jogos de futebol eram estigmatizados como alienantes. Hoje se percebe que nem esses jogos e esses dérbis de outros tempos eram os causadores da incultura popular, como os deste tempo se tornam essenciais para saúde psicológica de um povo infernizado e para a sua necessária descompressão de uma realidade opressiva e traumática.

Dirão alguns livres pensadores, do alto da sua sapiência intelectual, que, ainda assim, apenas falamos de medicar o efeito e não de combater a causa. É verdade, mas não é isso, também, que em situações de crise do corpo e da alma, a ciência médica se propõe fazer?

Que venha o dérbi, com as suas paixões irracionais e ilógicas. Que venha o dérbi com os seus casos e casinhos, bem menos fraturantes que os da política. Que venha o dérbi com todo o seu eufórico cortejo de emoções. É certo que, por ele, o mundo e o país não melhoram, mas sempre embeleza as vistas e areja a alma.