Saco para bater à vontade
Se as duas principais referências do futebol do Benfica neste momento, Rafa Silva e Pizzi, na Seleção apenas detêm o estatuto de suplentes pouco utilizados, sobretudo o segundo, é porque algum défice qualitativo haverá no plantel encarnado, além de constituir prova inequívoca da ligeireza como foi abordada a substituição de dois elementos que há um ano desempenharam papel muito relevante na concretização da reconquista, Jonas e João Félix, ambos em meia época, mas que, no conjunto, valeram 26 golos.
Há, nitidamente, uma dependência excessiva daqueles jogadores e isso é preocupante por espelhar a dificuldade do coletivo em apresentar alternativas de acordo com as suas ambições desportivas.
Empolgado pela soberba afirmação futebolística do miúdo Félix, Lage ter-se-á iludido e não deu ouvidos ao que a prudência lhe sussurrou: miúdos há muitos, mas não como este, uma rara preciosidade, pelos golos que produz e pela arte que exibe, suscitando a eterna discussão sobre se deveria ficar mais um ano ou se, pelo contrário, o valor da sua venda foi argumento irrecusável. Claro que foi. O problema residiu, quanto a mim, na reorganização do plantel em função das saídas das peças mais talentosas e diferenciadoras. Essencialmente, o Benfica perdeu engenho e classe e ao tentar compensações na força e no músculo, adquirindo ou promovendo artífices de duvidosa aptidão, além de opção muito discutível, abusou da sorte e abriu antena ao ruído da discussão inútil.
Juntar no pilar central um Taarabt voluntarioso e trapalhão a um Fejsa vagaroso e limitado, em que cada qual joga para si, é meio caminho para as coisas correrem mal, como se tem verificado. Acrescentarei mesmo tratar-se de um equívoco completo porque o sérvio já não devia estar e o marroquino, além de não ser nenhum talento, aos 30 anos, já esbanjou tempo demasiado na sua carreira.
Admito que Lage veja nele chave para uma dificuldade concreta, mas deve moderar o entusiasmo quando se refere ao seu Adel, muita parra e pouca uva, ao mesmo tempo que continua a ostracizar Samaris, este sim, o cimento de que foi construída a trave mestra do campeonato 38, primeiro com Gabriel e depois com Florentino. Isto, os adeptos sabem, porque viram, foram testemunhas dessa revolução triunfal e legitimamente interrogam-se: será que o grego treina-se mal? É rezingão? Provoca mau ambiente? Talvez um pouco de tudo, mas como quem tem a obrigação de explicar escolhe o silêncio é natural que se sujeite a comentários depreciativos que podiam muito bem ser evitados.
E a respeito de Zivkovic? Outro mistério, por se ver nele, com aquele prendado pé esquerdo, condições favoráveis para mais satisfatoriamente responder às adaptações que Lage já experimentou e fracassaram à nascença, exemplos de Gedson e Taarabt no apoio a Seferovic, outro que mantém uma conversação difícil com a bola.
Bruno Lage não vai cometer o erro de transformar o Benfica numa equipa de adaptados, nem recusar as mudanças que se impõem. Por isso, encaro mal esta vaga maledicente que pretende transformá-lo num saco no qual se pode bater à vontade sem receio de reação, embora reconheça que foi um lapso de avaliação grosseiro pensar que saíam Jonas e Félix e tudo se resolveria com Tomás e Vinícius, sem mais nada.
Em relação à última época, por esta altura, nenhuma diferença significativa existe em comparação com o principal rival, FC Porto. Há um ano o Benfica tinha mais dois pontos, agora estão a par, mas a questão central é outra e quando o ambiente deveria estar mais carregado de nuvens para Sérgio Conceição, por ter falhado a entrada na Liga dos Campeões, deitando janela fora 50 milhões de euros coincidentemente com o maior investimento de sempre feito pelo dragão, como li em A BOLA, na ordem de 60 milhões, para recuperar a hegemonia perdida para o Benfica, é o trabalho de Bruno Lage que está a ser julgado no tribunal de rua.
O treinador encarnado foi apanhado na corrente de ar provocada pelos que cobiçam o poder na águia - abro aqui um parêntesis por causa das mais recentes declarações do treinador da equipa B, desmesuradas e merecedoras de rápido e total esclarecimento interno - e tropeçou nas suas próprias dúvidas, o que é absolutamente normal, em relação às opções a tomar, ao nível da filosofia, da estratégia ou da tática. Venceu, todavia, na batalha da comunicação. Conseguiu fazer prevalecer as suas regras, é verdade, mas exagera na teorização do conhecimento académico, a que o adepto comum liga pouco, em vez de se aproveitar dele na valorização da prática diária e virar o discurso na direção dos temas que os destinatários querem ouvir: causas, responsabilidades e soluções, sem máscaras.
Fernando Santos - Cada caso é um caso. Em obediência a esse princípio, Fernando Santos fez bem em respeitar as suas convicções e convocar Rúben Semedo, apesar de tudo. Seleção que representa um país civilizado não é albergue obrigatório de todos os futebolistas sobredotados. Primeiro está a sociedade, os títulos vêm a seguir. A França deu o exemplo ao Mundo com Benzema. Sem ferir este princípio, Portugal privilegia igualmente a reinserção, objetivo capital de todas as políticas sociais: para Fernando Santos, primeiro estão os homens, os resultados vêm a seguir.