Jiboia (e exagero)
Há uma crónica do Eça que tenho amiúde como metáfora da vida (e de tantas vidas) - aquela que ele escreveu a propósito do frenesim em torno da visita dum czar a Paris. Conta, na sua mordaz ironia, que um cozinheiro chinês matara uma cobra em Havana e, descrevendo-a, através de um desenho, a pôs do tamanho duma jiboia. Como a cobra não tinha de corpo mais do que lápis de carvão, ao interpelarem-no pela exorbitância , o chinês respaldou-se assim:
- Exagero? Não! Exagero era pintar a cobra e depois pôr-lhe quatro patas…
Ao ouvir e ao ler o que se tem dito (de mal a pior) de Bruno Lage - foi na história da exageração do cozinheiro do Eça que eu pensei. Sim, eu sei: o futebol é um jogo de fraca memória (que, implacável, tanto dá o que não se espera como tira o que não se imagina, de fogacho...) - e também sei que Romário, na sua poesia malandra, descobriu que treinador bom é treinador que não atrapalha. Não, não vou discutir se Bruno Lage já só é, no Benfica, o treinador que atrapalha (como uma água estagnada...) - mas vou lembrar uma ou outra coisa que dele muito se dizia (e bem) ainda há pouco: que, com argúcia serena, empurrava cada vez mais os seus jogadores para cima do seu talento, quando antes eles andavam a ser puxados para baixo, nas suas sombras. Que, com esperteza tática, era capaz de criar uma equipa em que o importante não era aquilo que a equipa sabia jogar, era aquilo que a equipa fazia com o seu saber jogar. Que, com a cabeça limpa, tinha todos os pupilos a confiarem em si, a levarem, com o coração nos pés, as suas ideias de jogo de onde as apanhavam para lugares sempre muito melhores. Podia lembrar ainda mais do que levou a que ele evitasse que Sérgio Conceição revalidasse o título para o FC Porto - mas não caberia neste espaço em que o que eu quero afirmar é que Lage não merece o apequenamento que desataram a fazer-lhe num exagero que nem precisa das quatro patas na cobra. E que não, não acho que a culpa do Benfica se afundar, como se afundou, seja sobretudo dele...