Deus quer, o homem sonha, a obra nasce
A Fox Sports, detentora dos direitos televisivos da Eredivisie holandesa, decidiu pagar aos clubes a tranche que faltava, relativa ao derradeiro trimestre da época, joguem-se ou não as jornadas em falta. Entretanto, num país fortemente atacado pelo Covid 19 - em 17 milhões de habitantes há 31.589 infetados e 3.601 mortos, com uma taxa de mortalidade por milhão de habitantes de 210 (em Portugal essa taxa é de 67) -, a Federação Holandesa de Futebol marcou o reinício da competição para 19 de junho, e recomendou aos clubes que retomassem os treinos individuais a partir de 15 de maio e sem restrições a partir de dia 29 do mesmo mês.
Na base desta decisão da Fox Sports está a certeza de que os ovos de ouro provenientes das transmissões televisivas dos jogos de futebol só poderão continuar a brotar do dito das ditas se ninguém matar as galinhas. Parece um raciocínio lógico e abrangente, que devia ser seguido pelos operadores televisivos portugueses, que têm no produto-futebol, por mais que se chorem, o principal ativo, aquele que potencia e serve de argamassa ao resto do negócio.
Sabe-se que perante a conjuntura anunciada, em que haverá quebras significativas de receita de bilheteira (com os bilhetes de época à cabeça, e no caso dos principais clubes não estamos a falar de trocos), de merchandising e de todos os negócios adjacentes, a começar pela restauração nos estádios, os clubes vão ficar mais vulneráveis financeiramente e mais à mercê de eventuais predadores. No passado, entre nós, tivemos oportunidade de testemunhar, no cenário dos direitos televisivos, a canibalização dos mais fracos, que se vendiam, para sobreviver, por um prato de lentilhas. É esse panorama que importa não ver repetido agora. E a forma mais segura disso não acontecer é através da negociação centralizada de novas condições. Tem sido dito, e bem, que só unida, sem que cada um pense apenas em si e que de danem os outros, a Europa poderá ultrapassar, com menos danos, o brutal ataque do novo coronavírus. O mesmo se aplica ao futebol. E se a partir deste problema os clubes não criarem condições de subirem a um patamar diferente de organização, capaz de defender melhor o negócio, então terá sido mesmo uma oportunidade perdida, de baliza aberta e com o guarda-redes no chão…
Mal se soube a quem tinha sido distribuído o processo contra Rui Pinto, os defensores legais e adjacentes do hacker vieram clamar contra o benfiquismo do presidente do coletivo. Ainda há pouco tempo, um juiz do Tribunal do Porto, a quem calhou o recurso do processo dos emails em que o FC Porto foi condenado em primeira instância, pediu escusa do mesmo, por entender que a sua condição de benfiquista poderia criar uma perceção distorcida das suas decisões. A Relação, porém, chamada a pronunciar-se, manteve-o na função, dizendo que o argumento invocado não era suficientemente relevante. Mas, francamente, não era aqui que queria chegar. O ponto mais interessante é verificarmos que há, em Portugal, uma prática enraizada de tentar fragilizar os juízes dos casos mais mediáticos, pondo em causa a sua imparcialidade. Emails, Rui Pinto, Alcochete, e-toupeira, Apito Dourado, são exemplos, ligados ao futebol, disso mesmo. Mas esta forma de atuar não tem a ver com o futebol: basta ter memória e recordar, entre muitos outros, os ataques aos juízes no caso da Casa Pia, ou, de forma exponencial, da Operação Marquês. A minha dúvida é se os tiros disparados pelas equipas legais contra os juízes provocam dano, ou se resvalam, pura e simplesmente, na couraça da indiferença. Francamente, inclino-me mais para a segunda versão…
A vida dá muitas voltas e há menos de um ano, quando foram anunciadas sanções (quase nunca cumpridas) de jogos à porta fechada, tive oportunidade de insurgir-me contra a natureza das mesmas, por irem contra a essência de um jogo que tem no povo que vai aos estádios a sua principal riqueza. Mas um homem é ele e as suas circunstâncias e de repente damos por nós a suspirar por jogos à porta fechada que nos aproximem da vida como a conhecíamos antes da pandemia. Se a calendarização avançada em esboço pelo primeiro-ministro António Costa bater certo, lá para junho ou julho poderemos ter condições de terminar as competições, o que é um bem, dentro de todo o mal que tem acontecido.
Em princípio - e francamente não vejo como possa ser de maneira diferente - deveremos habituar-nos a este registo de jogos sem público, até que apareça uma vacina e que esta seja produzida numa escala tal que esteja acessível toda a população. Numa perspetiva otimista estaremos a falar de um ano, numa ótica se calhar mais realista, no dobro desse tempo. E esta nova circunstância suscita-nos questões nunca antes colocadas.
Por exemplo, em jogos à porta fechada, qual vai ser o peso do fator-casa? E sem público nas bancadas, será que o rendimento dos jogadores será o mesmo, amputados do apelo que vinha de fora e que os galvanizava e fazia transcenderem-se? Por outro lado, haverá jogadores (a que na gíria se chamam jogadores de treinos) que sem público nas bancadas vão libertar-se do medo cénico que os tolhia, apresentando-se a um nível competitivo superior? E como será a relação jogadores-árbitros, sem o bruá de fora? Baixa de imediato o nível de contestação e vamos assistir, quiçá, a melhores performances dos juízes de campo?
António Salvador, presidente do SC Braga, foi perentório: «Perdoar juros ao Sporting? Os contratos são para cumprir e, neste tipo de situações, defenderei sempre os interesses do SC Braga.»
Cruzando esta abordagem com a visão do Sporting, veiculada pelo vice para as Finanças, Salgado Zenha, a conclusão de que o caldo da transferência de Rúben Amorim vai entornar-se, é obrigatória e poderá marcar a rentrée do nosso futebol. Os tempos de crise profunda que se anunciam, talvez aconselhem mais soluções negociadas do que braços-de-ferro. Caso contrário, é para isso que existem os tribunais, do futebol e os outros…
Finalmente, uma palavra para alguns factos positivos que têm resultado desta coisa que nos está a acontecer.
Por exemplo, tem havido um acesso mais facilitado aos protagonistas do desporto, e nestes tempos de crise temos lido e visto trabalhos jornalísticos de grande mérito e interesse, realizados em condições impensáveis há poucos meses. Textos como aqueles que foram escritos por Luís Castro, Carlos Carvalhal ou Rui Vitória vão ser guardados em páginas de ouro por este jornal. A entrevista do Nuno Perestrelo a Alípio Matos, o trabalho da Célia Lourenço com os nossos verdadeiros campeões, e o artigo de opinião de Dias Ferreira, são exemplos de excelência, que nos enchem de orgulho. E o regresso, via Skype (mas com um profissionalismo e um entusiasmo da escola do João Bonzinho) dos programas da noite d’ A BOLA TV, Quinta da Bola incluída, mostram que, como dizia Fernando Pessoa, «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce…»