De Alcochete para o mundo
1 - É-me difícil escrever sobre o futebol português nestes tempos de miséria moral e de indigência ética. Não porque seja um sonhador que julga que este reino do futebol seria sempre o reino das maravilhas. Não porque me ache no direito de ser juiz implacável de tudo o que observamos, tantas vezes com perplexidade. Mas porque os tempos de agora nos estão a aproximar dos antípodas do futebol que, menino e moço, aprendi a saborear, e no qual a busca vigorosa da vitória e a constatação sofredora da derrota eram simplesmente a expressão da ideia finalista de qualquer competição. Lembro-me da ideia da rivalidade aguerrida, mas contida dentro dos limites da urbanidade. Recordo-me da dialéctica quase ingénua na defesa dos nossos clubes, da ironia dos vencedores para os derrotados e da réplica da desforra. O mundo do futebol era saudavelmente bipolar, quase inocentemente maniqueísta, partindo do princípio básico da alternância de quem ganha e perde. Na minha terra, havia uma barbearia que era um feudo do Benfica. A 50 metros havia outra que era portista. Entre as duas, o café de um leão indomável. E eu, depois de ler A BOLA, deambulava entre barbeiros, ainda não cabeleireiros, e o café onde preenchia a minha caderneta de cromos de jogadores, e assistia, gostosamente, às discussões tão empenhadas quanto leais entre rivais. Não havia inimigos, mas adversários. Não havia ódio, mas disputa. Não havia a ditadura do dinheiro, mas a medida do amor à camisola. Não havia claques, mas apoiantes misturados numa festa. Não havia palavras e palavrosos, mas balizas e golos. Não havia poderes, mas deveres. Não havia violência, mas entusiasmo. Não se sabia quem era fulano, sicrano ou beltrano numa qualquer estrutura (palavra que não “existia”) de um clube. Vi o Benfica, como o Sporting e o Porto, em Coimbra, no Calhabé, onde o meu Pai me levava a ver estes jogos com a Académica, apesar de, na altura, o meu coração ser já benfiquista. Em 1956, assisti, com um familiar portista, ao jogo nas Antas em que o FCP se sagrou campeão vencendo por 3-0 a Académica, e assim impedindo o meu Benfica de o ser (2º, com os mesmos pontos). Quando o Beira-Mar subiu à primeira divisão não perdia nenhum jogo dos 4 grandes (então ainda com o Belenenses) no agora velhinho e desprezado “Mário Duarte”. O futebol era o jogo e tudo o resto se dissolvia nele. Éramos nós que buscávamos o futebol-delícia, não era o futebol-totalitário que agora nos aprisiona, todos os dias, todas as horas, como se nele estivesse a essência da vida.
Falo destas memórias não para dizer que sou saudosista. Sei que o mundo mudou vertiginosamente no e em redor deste desporto. Mas o que mais me assusta, nos dias que correm, é a negação da exemplaridade de muita gente que nele e dele vive. Imagino uma criança assistindo a toda esta parafernália quase patológica num país suspenso a cada hora por qualquer facto ou parvoíce futebolística. Receio o modo como muitos jovens absorverão, na sua personalidade, esta fragmentação ética despudorada onde impera o lema de que para se atingir um fim (efémero) valem todos os meios lícitos ou ilícitos, legítimos ou ilegítimos, louváveis ou censuráveis. Na televisão (quase) tudo é bola, ou melhor é bola sem bola. Violência verbal a suscitar violência factual. Ódio indisfarçado a promover os piores valores relacionais para vidas futuras. Será que a ideia da convivência, o princípio da lealdade, a alegria da competição, a sinceridade da relação, a humildade da aceitação, a decência do comportamento, o direito do dever, a coerência da sensatez, a prudência dos limites, o orgulho de pertença são agora pontos enterrados no lamaçal do dinheiro, do ódio, da retaliação, da vaidade, do poder pelo poder, da manipulação comunicacional, da mentira?
2 - Tudo já foi dito sobre os acontecimentos relacionados com o Sporting. Não vou aqui falar de tão degradantes e dissolventes situações. Na terça-feira da semana passada, quando, em casa, assistia ao culminar da violência em Alcochete, senti-me envergonhado. Sei que, neste ambiente sórdido em que vivemos, há quem pense que quanto mais problemas houver num rival, tanto melhor para nós. Recuso-me a pensar assim e a educar a minha descendência nesse ambiente. Situações como as que aconteceram são e serão inevitáveis se nada mudar, desde logo na cúpula da responsabilidade dos clubes. Agora a questão já não é se podem ocorrer, é, infelizmente, apenas saber quando e com que magnitude acontecem. Todos perdemos. Considero que não há ninguém mais benfiquista do que eu. Amo até ao tutano da alma o meu clube. Mas, racionalmente, procuro não perder o discernimento tantas vezes toldado pela química emocional. Fiquei desgastado com o que aconteceu em Alcochete e logo escrevi a dois bons amigos sportinguistas uma mensagem: “Hoje sou sportinguista”, em plena solidariedade que põe de lado as baias da rivalidade. No entanto, sei que haverá quem, lendo estas palavras, as ache “blasfémias”. Se for o caso, paciência.
Neste contexto, não posso deixar de dizer quanto me entristeceu a ausência de qualquer gesto dos rivais do SCP. Bem sei que já houve uma “guerra de comunicados” entre o SLB e o FCP, a propósito da (grave) suspeita de corrupção para as bandas de Alvalade. Bom seria terem-na precedido por uma atitude de reprovação firme perante a horda de vândalos que espalhou o terror em Alcochete.
3 - A quase totalidade dos sportinguistas e comentadores afectos vieram proclamar, ainda que com cambiantes, o seu inegociável afastamento do presidente do SCP. Bem-vindos à claridade do dia! Para muitos deles, pessoas experientes, inteligentes e com inabalável sportinguismo, custa a perceber terem precisado de 5 anos e de um acto de vandalismo e cripto terrorismo para se darem conta do que era evidente! Cada qual com a sua razão, mas todos com a mesma desculpa. Há em tudo isto algo que me fez lembrar o súbito rompimento entre Sócrates e seus incondicionais amigos e colegas que precisaram de uma década ou mais para enxergar o que a “ética do rosto” tão esplendorosamente evidenciava.
4 - E eis que, de supetão, também todas as cadeiras do poder se levantaram. A uma só voz, os órgãos de soberania. A um só “comunicado” entidades públicas ligadas ao desporto, a Liga de futebol e outras organizações. O Primeiro-ministro anuncia uma nova Autoridade - mais uma! - para fazer o que as que existem fingem que fazem. É sempre assim no nosso país. As coisas só mexem (ou fingem mexer) nos dias do pós-acontecimentos graves e com repercussão pública. Mas, perante tudo o que de mal vem acontecendo há muito no futebol, o certo é que continuamos num quase “dolce far niente”. Temos punições ridículas de uns míseros euros, púdicas admoestações ou a perda de uns pontinhos para prevaricadores, corruptores e corrompido e para actos de pura violência. Tudo numa boa. Um centro de árbitros é alvo de um quase sequestro com ameaças psicológicas e físicas e nada se passa. Temos agentes do desporto que sofreram actos de vandalismo nas suas casas e com as suas famílias e tudo se esquece. Temos descargas de tochas incendiárias e não há punição, a não ser os tais quase simpáticos euros de multinhas. Temos claques ditas organizadas e claques ditas irregulares a quem tudo é consentido num contexto de vandalismo, vícios sociais e de permuta de favores e interesses e assobia-se para o lado. Temos programas onde (vimos há dias) além da barbárie de insultos chegámos ao ponto de, em directo, haver ameaças físicas, com a hipócrita e pseudo¬moralista indignação de quem dirige tais programinhas de sangue e escárnio, como se os escolhidos não o tivessem sido por terem tais características e os clubes nada fazerem (às vezes, bem pelo contrário) para afastar essas pessoas.
Banalizou-se a apologia da dívida e da antecipação de receitas futuras como forma de procrastinar os problemas, aceitou-se, sem consequências, que as SAD falidas ou pré-falidas vivam desrespeitando a lei que as levaria à dissolução. Enfim, podemos hoje constatar que o reino do futebol é habitado por muita gente não aconselhável e afasta as pessoas sérias, decentes e urbanas. No dia em que um clube, grande ou pequeno, seja despromovido por batota ou banido por causa da violência dos seus adeptos, talvez voltemos a enxergar alguma limpidez neste desporto. Haja coragem de banir péssimas práticas e de afastar pessoas indignas. Precisamos de algo em que acreditar, mesmo que por via dolorosa.
P.S. 1 - Lamentável a quase total desconsideração pelo D. Aves na maioria dos canais televisivos, antes da final da Taça. Parecia que o SCP ia jogar contra não sei quem…
P.S. 2 - Uma palavra de sincera solidariedade para Rui Patrício, grande profissional que tudo mereceria no seu clube.