Como as coisas mudaram…
Jesualdo Ferreira não comunicou a sua passagem à reforma durante a grande entrevista A BOLA/A BOLA TV, con- duzida pela jornalista Irene Palma e publicada na edição do último sábado, mas afirmou estar a preparar-se para o adeus, de uma forma séria, forte e consciente, depois de uma carreira marcante que já vai em 45 anos, toda ela associada ao risco e construída a pulso.
Orgulha-se de ter sido campeão em três continentes, de ter deixado a sua marca por onde passou e por ficar ligado, de diferentes maneiras e em diversos momentos, aos principais clubes portugueses: Benfica, FC Porto, Sporting e SC Braga. Além de pertencer-lhe a verdadeira paternidade do plano estratégico de formação que viria a abrir as portas dos tempos modernos ao futebol luso.
Aos 73 anos, é dono de um currículo invejável, feito de saber, perseverança, sacrifício e competência. O que ele andou para aqui chegar e sentir-se recompensando por ter a consciência plena de que nada lhe foi oferecido. Saiu-lhe do corpo, em briga constante e em risco permanente. Assim pode retratar-se a sua longa e gratificante vida profissional.
O Jesualdo de hoje, com um discurso retrospetivo, tranquilo e apaziguador, olhando para o Jesualdo de ontem, culto, irreverente e provocador. Quando começou, porém, não havia espaço para a erudição, nem lugar para os académicos. Vivia-se ainda no empirismo puro e duro.
Como recorda, a treinador que não tivesse sido jogador dificilmente lhe seria concedida uma oportunidade para fazer parte da família e progredir numa profissão exclusivamente destinada à gente da bola. Até nessa mudança de orientação, e também de mentalidade, funcionou como ponto referência decisivo, ao levar o conhecimento científico para dentro de futebol, de aí que, quando começou a aparecer mais nos jornais, tivesse ficado registado, para sempre, como professor Jesualdo, Manuel para os amigos.
Voltando à entrevista, e à interessante resenha histórica do seu percurso de treinador, conta que no FC Porto, clube ao serviço do qual venceu três Campeonatos (2007, 2008 e 2009), foi muito fácil trabalhar porque «não tinha muita gente para falar». A estrutura era ele, Pinto da Costa e Antero Henriques, uma «estrutura blindada», porque, acrescenta, «só assim se consegue ser campeão».
No Benfica, pelo contrário, havia muita dispersão, apenas travada quando Luís Filipe Vieira passou a acumular as presidências da sociedade desportiva e do clube.
Jesualdo tem razão. Basta ver como as coisas mudaram desde então. Ele conquistou os 22.º, 23.º e 24.º títulos para o FC Porto e desde a sua saída, nos dez anos seguintes, o dragão ganhou quatro e a águia seis.
Verificou-se uma inversão na tendência conquistadora, a qual só não foi mais acentuada por razões amplamente conhecidas e debatidas. Prova irrefutável de que o Benfica investiu na sua organização, enquanto o FC Porto estagnou e se deixou adormecer à sombra dos louros do passado, ou devido a qualquer outro motivo que me escapa.
Hoje, no Benfica, o treinador, que é Bruno Lage, sabe que tem pouca gente para falar. Três pessoas, Luís Filipe Vieira, presidente, Rui Costa, administrador, e Tiago Pinto, diretor-geral.
No FC Porto, que se saiba, serão até menos, por não haver uma figura que se possa equiparar a Rui Costa. Talvez Casillas se ficar, talvez…
Independentemente da lucidez com que Jesualdo abordou a questão creio que a principal diferença entre os dois emblemas no momento atual nem sequer reside no número de elementos das respetivas estruturas, mas na forma como se relacionam.
Imagine-se o escândalo se Bruno Lage telefonasse a um programa televisivo para informar que foi ele quem pediu a contratação de determinado jogador e logo a seguir, no mesmo programa, Vieira entrasse também em direto para dizer que sim senhor…
Seria o gozo total, pelo ridículo da situação. Mas isso aconteceu, por estes dias, embora com outros intervenientes (Sérgio Conceição e Pinto da Costa), a propósito do avançado Zé Luís, um jogador que o presidente portista diz acolher com «enorme satisfação» por ser «um dos objetivos propostos pelo nosso treinador», para não subsistirem dúvidas.
Além de ficar o aviso à massa adepta: se, ao contrário do que se espera, o cabo-verdiano não for nenhuma pérola, por favor, vão aborrecer outro…
É verdade, como as coisas mudaram desde que Jesualdo saiu do dragão…
Nota final - Rúben Amorim recusou os sub-23 do Benfica. Pelo que li, queria ser só ele a mandar. Escolheu o Estoril, mas acabou por dar a preferência à equipa B do SC Braga. Também não resultou. É o que se chama um candidato a treinador muito difícil de satisfazer…