Diogo Jota partiu e deixou muitas saudades
Diogo Jota partiu e deixou muitas saudades (Foto: Imago)

Deixa-me tratar-te por 'tu', Diogo Jota

'Livre e Direto' é o espaço de opinião semanal do jornalista Rui Almeida

Olá, Diogo.

Vou tratar-te por tu. Tenho mais 30 anos e, curiosamente, um filho com o mesmo nome. Quando nasceste, era já jornalista. Tinha viajado meio mundo e conhecido milhares de jogadores, treinadores, cidades e estádios. Tinha narrado centenas de jogos de clubes e de seleções e assistido a grandes competições.

E, depois de nasceres, assim o continuei a fazer. Embora — foi o destino que o ditou — nunca nos tenhamos cruzado diretamente, cara a cara, nem te tenha feito perguntas. As mais tolas e óbvias, que resultam daquelas flash interviews em que quase todos perguntam o mesmo para quase todos responderem o mesmo, ou as mais elaboradas, para te conhecer melhor e saber o que pensas da vida, da família, dos amigos, da morte…

É verdade: agora que penso bem, não tenho uma fotografia tirada contigo (selfie, a la minute ou mais formal), mas sempre deste o que, em televisão, se chama um bom boneco: simpático, sorridente, tranquilo e telegénico.

Era isto que sabia de ti, até (ironia máxima), te ter conhecido melhor pela palavra de outros, pelo choro de muitos, pelas homenagens de milhares, pela singeleza com que te recordam, agora que começaste outra alucinante viagem pelo desconhecido.

Sabes, tenho com a morte a mesma relação que ela parece ter comigo: de respeito, mas de distanciamento, percebendo que ela se tornará a opção final deste percurso, que chegará sem marcar hora e que trará um one way ticket para outras galáxias, quiçá para a mais radical experiência.

Claro, não tenho pressa nenhuma, tal como acho que não tinhas, e que foste apanhado na curva de um asfalto matreiro, de um pé pesado, de um olhar desviado ou de um pneu devassado.

Sabia-te, na tua arte, um eleito. Um predestinado, portanto, daqueles que resolve jogos, encanta multidões, partilha emoções e faz parar estádios, cidades, países e povos, envolvendo no cheiro de golo uma benção urbi et orbi a quem gosta do jogo e faz dele uma catapulta para passar melhor os dias e as horas difíceis.

O que não sabia, confesso, era a aura de felicidade que geravas junto de quem contigo privava. Não sabia que aquele sorriso não era apenas fruto do momento empolgante de um golo, do orgasmo que resulta da alegria imensa do objetivo atingido, mas que era genuíno, humano, assumido e partilhado por uma personalidade ímpar e por um caráter íntegro.

Não sabia que o pai de família, de aliança no dedo há tão pouco tempo, mas no coração há anos suficientes para que a solidez do romance se tornasse castelo de vida, era também o companheiro de equipa catártico, capaz de levar aos ombros a moralização do emblema e a explosão moral dos camaradas de balneário, transformando-a num denominador comum de atitude, garra, juventude, sorriso, alegria de viver e de partilhar.

Diogo, a forma como tratas os outros será sempre o espelho de ti. No teu caso, nortenho do mundo e com mundo, o rasto de uma omnipresença em cada recanto por onde passas é a garantia de que, agora, nesta viagem ultrassónica em que embarcaste sem aviso, serás relembrado e continuarás a fazer-te sentir. A dimensão física é algo que resulta de um profundo egoísmo humano: todos queremos os que amamos próximo, para lhes tocarmos, sentirmos o seu arfar e a sua reação.

Temos sempre muita dificuldade em libertar. Esse, sim, o mais acabado ato de amor. Libertar para deixar que todos os momentos passados juntos se tornem ainda mais épicos, para que o círculo se feche e que possa fazer sentido o amor que sentimos.

Estarás a sorrir com estas palavras, porque sabes bem que o são: palavras.

E que a passagem à pratica desta teoria é tanto mais complicada quanto o modo como partimos para a tal viagem cósmica, que, para os crentes, é a libertação da alma. Para os não crentes, como eu, é apenas o aliciente desconhecido a dar a mão, para completarmos o percurso.

Talvez seja fácil para quem vai, o que, no teu caso, se escreveu torto. A tua partida foi ziguezagueante, não apaziguou. Foi cortante para quem te seguia e mesmo para os que passam ao lado das estórias mais mundanas do planeta futebol.

Foi (cá está o justo egoísmo da presença), injusta e incompreensível. O teu amigo Klopp, o Jurgen, é que disse, tão simplesmente, o que é tão complicado de sentir e de dizer: «Deve haver um propósito qualquer, mas não o consigo entender.»

E é nesta mistura triturante e anestesiada de sentimentos que ainda por aqui andamos, no dia em te será prestada a homenagem final, no entender dos cânones e dos ditames sociais.

Porque a melhor homenagem, Diogo, é olharmos para ti, para o teu percurso, para o que o teu irmão percorreu até te acompanhar, e tomarmos como exemplo do que nos pode empolgar.

Espero poder fazer da vossa humildade a lição mais poderosa, do vosso sorriso o melhor combustível, da forma como amaram e motivaram (e continuarão a amar e a motivar), o leit motiv, o guardião e o guião mais determinantes para mostrar ao meu filho Diogo, à minha filha Beatriz e a todos os jovens deste país que, afinal, vale a pena ter heróis.

Obrigado, Diogo, por me deixares tratar-te assim.

Atrás escrevi que não tenho fotografias contigo. Talvez não seja bem assim: a memória é a mais impressiva foto da vida. A outra, a selfie, tiramos na próxima viagem.

Cartão branco
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Cartão amarelo
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