Asencio, Hakimi e Suárez: antes de tudo sou mulher
Ser mulher é um desafio. Ser mulher e escrever num jornal maioritariamente lido por homens e dedicado ao desporto é um desafio ainda maior. Acreditem que é rara a semana em que não recebo um ou dois comentários cheios da mais elementar misoginia e expressões como «volta para a cozinha» começam a ser comuns na minha vida. Tão comuns que, em abono da verdade, já deixaram de me incomodar. Aquilo que me incomoda, actualmente, é bastante mais grave do que meia dúzia de ofensas de gente mal resolvida que acredita piamente que isto antigamente é que era bom. Acontece que, infelizmente, no mundo do futebol, esta semana foi pródiga em casos que não só me incomodam como me indignam e revolvem as entranhas.
Antes de avançar, deixem-me só clarificar que acredito na presunção de inocência como princípio fundamental. Mas o que também sei é que, em casos específicos de denúncia de violência de género e agressão sexual, o papel das mulheres que denunciam é profundamente frágil, especialmente quando o fazem contra homens ricos e, por isso, poderosos.
Além disso, os números são claros: meta-análises e estudos rigorosos indicam uma taxa de falsas acusações de abuso sexual entre 2 % e 8 % sendo que, na maioria dos países, rondam os 5 %. Assim, a esmagadora maioria das denúncias, sabemos, é verdadeira.
Denunciar maus-tratos, sejam eles físicos ou psicológicos, nunca é fácil. Até porque quem denuncia sabe que terá seguramente de enfrentar descrédito, humilhação, violência secundária e exclusão social. E quando os denunciados são jogadores de futebol, com a paixão clubística a estimular a irracionalidade dos adeptos, muitas vezes as mulheres denunciantes vêem-se em situações de verdadeiro julgamento público onde são vítimas de tentativa de desacreditação por parte de milhares e milhares de pessoas.
Eu percebo que, de repente, saber que alguém que idolatramos não passa de um escroque pode ser chocante. Nunca mais me esqueço do dia em que descobri que Pablo Neruda, meu poeta favorito e dono de alguns dos versos mais bonitos do mundo, tinha sido um pai aterrador que abandonou a filha com deficiência, a quem chamava aberração, na maior das misérias. Mas às vezes temos mesmo de aceitar que talento e carácter não andam de mãos dadas.
Esta semana soubemos que o Ministério Público espanhol pediu uma pena de prisão de dois anos e meio para Raúl Asencio, defesa central do Real Madrid.
E o que fez o jogador para que isso acontecesse? Basicamente pediu um vídeo a três colegas das camadas jovens do clube madrileno, onde os mesmos mantinham relações sexuais com duas jovens, uma delas menor de idade. O vídeo foi gravado sem o consentimento das jovens e o jogador não se limitou a assistir ao mesmo — o que já seria mau —, mas tratou também de o difundir o que, obviamente, é inaceitável.
Para os outros três futebolistas, já nenhum deles no clube, a condenação pedida é de quatro anos e sete meses de prisão (tendo uma das jovens apenas dezasseis anos, além da filmagem e divulgação sem consentimento, existe também a agravante da pornografia de menores).
E eu só gostava de saber o que é que leva alguém a ter este tipo de atitude. E sim, difundir um vídeo destes é quase tão mau como participar na sua filmagem. Em Espanha, só em 2023, existiram 4.460 denúncias de difusão não consentida de conteúdos sexuais. E o que é que será que quem partilhou ganhou com isso? O que terá mudado para melhor na vida de Raúl Asencio? Que satisfação terá sentido em expor assim duas miúdas? Ter-se-á sentido um campeão? Pode ser que, agora, repense. E, acima de tudo, que se arrependa.
Mas Asencio não foi caso único nesta semana. Também em França, o Ministério Público decidiu pedir que Achraf Hakimi, lateral direito do PSG, seja julgado por violação depois de, em 2023, ter sido denunciado por alegadamente ter forçado uma mulher a manter relações sexuais.
Neste caso, o jogador diz estar a ser alvo de um esquema, mas após um frente a frente entre acusadora e acusado, e depois de ouvir ambas as partes, o Ministério Público entendeu que há indícios suficientes para levar o jogador a julgamento e que as suas declarações não foram convincentes. E, aqui, volto a questionar-me: o que levará um homem destes a supostamente forçar uma mulher? Não sejamos ingénuos, Achraf Hakimi pode facilmente encontrar companheiras para sexo consensual.
Então qual a necessidade de, alegadamente, forçar? O que é que pode levar um homem com uma vida de sucesso a ter este tipo de comportamento primitivo?
Enfim, não podia fechar esta série de notícias da semana sem tocar na ferida onde ela mais em dói que é como quem diz em Luis Suárez. E sim, presunção de inocência e tudo isso, mas seria mesmo necessário ao Sporting ir buscar um jogador em cima de quem pendem acusações tão graves como as agressões físicas e psicológicas que a ex-mulher diz ter sofrido? As declarações desta mulher são assustadoras: desde ser trancada em casa, controlada em todos os movimentos, agredida e forçada a relações sexuais quando não o desejava, podemos encontrar no seu relato todos os tipos de violência.
E isto não pode deixar nenhum adepto confortável. Mesmo que o jogador venha a ser absolvido, estas suspeitas vão estar sempre presentes enquanto o julgamento não terminar. Como é que, sabendo isto, alguma mulher se vai conseguir levantar em Alvalade para festejar um golo deste jogador que, antes de tudo, é um homem acusado de maltratar uma de nós? Não podíamos mesmo ter esperado que tudo se resolvesse para depois então avançar para a contratação? Não teríamos mais opções no mercado? Se estas acusações se vierem a comprovar, o que faremos?
Espero que não passe pela cabeça de ninguém defender que alguém que seja declarado culpado de tão hediondo comportamento possa continuar a envergar a verde a branca. Antes de ser jogador, independentemente do número de golos que venha a marcar, Suárez é um homem. E o Sporting tem obrigação de investigar bem o carácter de quem traz para o seu balneário. Até que tudo seja esclarecido, não contem comigo para festejar golos do avançado. Porque antes de tudo sou mulher. E o peso destas acusações é demasiado grande para poder ser ignorado.
No pódio:
Muito bem o Futebol Clube do Porto com a apresentação surpresa de Luuk de Jong. Numa altura em que tudo se sabe, tudo se escreve e tudo se especula, está de parabéns quem conseguiu manter o segredo que foi revelado em primeira mão aos adeptos, em pleno relvado do Dragão. Fabrizio Romano deve estar enrolado algures, a chorar em posição fetal.
Na bancada:
O Barcelona oficializou por estes dias o seu contrato com a República Democrática do Congo que injetará no clube 40 milhões de euros. Em troca, as camisolas de treino de todos os jogadores das camadas profissionais do clube terão escrito nas costas 'República Democrática do Congo – Coração de África', naquilo que o governo congolês descreve como uma tentativa de promoção do país quando, sabemos todos, é apenas uma tentativa de limpeza pública da imagem de um regime que bombardeia indiscriminadamente a população civil, que executa opositores e que obriga à deslocação forçada de milhões de pessoas. E sim, o Barcelona não é o único clube europeu a servir como máquina de lavar a imagem de um regime que atropela os direitos humanos (o Atlético de Madrid faz o mesmo, mas com o Ruanda), mas confesso que esperava mais do clube catalão. Afinal, parece que é mesmo só o dinheiro que conta.