Uma pequena história de vida

OPINIÃO04.04.202002:20

Nunca tive um incontornável apelo pela medicina, mas como hesitava na escolha de um futuro universitário, num tempo em que não havia faculdades de comunicação em Portugal, optei por seguir o sonho de minha mãe e inscrevi-me na Faculdade de Medicina de Lisboa. A coisa nem começou a correr mal. No exame, em Santa Maria, dispensei da oral das disciplinas nucleares e garanti uma entrada sem sobressaltos, num curso que tinha, para  mim, o fascínio do poder de ajudar os outros e a forte contrariedade de uma exigência de estudo para a qual não estava preparado, em tempos de várias incursões, ainda avulsas e sem espírito de organização, por movimentos políticos de oposição ao regime que continuava a governar um Portugal sombrio e fatalista.


Um dia, ia a mais de metade do primeiro ano, passava por um corredor do Hospital, vestido com bata branca, a caminho de uma das aulas práticas de anatomia, quando, de repente, senti que algo me prendia. Surpreendido, olhei para trás e vi um velho, deitado numa maca, a segurar-me, com desespero, uma ponta da bata. A voz, sumida, pedia-me insistentemente ajuda, e os seus olhos, apesar de baços e mortiços, manifestavam-me uma aflição dramática.


Só um velho doente e desesperado poderia confundir-me com um médico, mas o sofrimento tem razões que a razão desconhece e aquela bata que eu, desmazelado estudante, vestia, era, para aquele pobre homem, mais do que uma luz, um farol de esperança.


Prometi-lhe ir chamar uma enfermeira e bem que procurei. Na zona das urgências, há um rigoroso código de procedimentos e uma hierarquia de prioridades. Naquele momento, todas as atenções estavam viradas para doentes em estado crítico e as equipas de serviço tentavam salvar vidas, não tinham tempo para ouvir um cretino de um estudante que decidira meter-se no que desconhecia e onde não tinha sido chamado.


Voltei ao corredor e disse ao velho: «já vem aí alguém ter consigo”. Era, apenas, uma mentira piedosa, mas que se me afigurava cruel e que  velho recebeu com silêncio e lágrimas.


Nunca tinha contado este episódio que me marcou para a vida e que me fez decidir o futuro. Para desgosto de minha mãe, mas para óbvio benefício da saúde pública, abandonei o curso de medicina e dediquei-me ao jornalismo, uma paixão, entretanto, revelada.


Mas se conto, hoje, esta pequena história de vida, é porque, através dela, quero fazer uma sincera homenagem às equipas clínicas que estão na linha da frente do combate à pandemia que já infetou mais de um milhão de homens e de mulheres em todo o mundo.


E nós que, na área do jornalismo desportivo, estamos tão habituados a deformar a verdadeira dimensão das coisas, chamando herói a quem é apenas talentoso, enaltecendo de glórias e de títulos de adjetivação excessiva quem nos ajuda ao prazer do ócio, devemos cair na realidade e perceber, enfim, que herói é quem oferece a vida para salvar a vida dos outros.


Este é, pois, um tempo em que conseguimos, mais do que nunca, nas nossas vidas, perceber o que é verdadeiramente importante. E isso significa que sendo a sobrevivência o objetivo prioritário, isso não invalida que sejamos, agora mais do que nunca, capazes de entender que a vida é bem mais do que sobreviver. A vida é a liberdade que hoje sentimos tão condicionada, a vida é a alegria, a festa, o prazer de estar com os nossos e com os outros. E que para termos essa nossa vida de volta, precisamos, antes de tudo, de sobreviver à custa da coragem e do risco dos heróis que, nos hospitais, não podem teletratar, nem telecurar.