Uma pequena história de vida
Nunca tive um incontornável apelo pela medicina, mas como hesitava na escolha de um futuro universitário, num tempo em que não havia faculdades de comunicação em Portugal, optei por seguir o sonho de minha mãe e inscrevi-me na Faculdade de Medicina de Lisboa. A coisa nem começou a correr mal. No exame, em Santa Maria, dispensei da oral das disciplinas nucleares e garanti uma entrada sem sobressaltos, num curso que tinha, para mim, o fascínio do poder de ajudar os outros e a forte contrariedade de uma exigência de estudo para a qual não estava preparado, em tempos de várias incursões, ainda avulsas e sem espírito de organização, por movimentos políticos de oposição ao regime que continuava a governar um Portugal sombrio e fatalista.
Um dia, ia a mais de metade do primeiro ano, passava por um corredor do Hospital, vestido com bata branca, a caminho de uma das aulas práticas de anatomia, quando, de repente, senti que algo me prendia. Surpreendido, olhei para trás e vi um velho, deitado numa maca, a segurar-me, com desespero, uma ponta da bata. A voz, sumida, pedia-me insistentemente ajuda, e os seus olhos, apesar de baços e mortiços, manifestavam-me uma aflição dramática.
Só um velho doente e desesperado poderia confundir-me com um médico, mas o sofrimento tem razões que a razão desconhece e aquela bata que eu, desmazelado estudante, vestia, era, para aquele pobre homem, mais do que uma luz, um farol de esperança.
Prometi-lhe ir chamar uma enfermeira e bem que procurei. Na zona das urgências, há um rigoroso código de procedimentos e uma hierarquia de prioridades. Naquele momento, todas as atenções estavam viradas para doentes em estado crítico e as equipas de serviço tentavam salvar vidas, não tinham tempo para ouvir um cretino de um estudante que decidira meter-se no que desconhecia e onde não tinha sido chamado.
Voltei ao corredor e disse ao velho: «já vem aí alguém ter consigo”. Era, apenas, uma mentira piedosa, mas que se me afigurava cruel e que velho recebeu com silêncio e lágrimas.
Nunca tinha contado este episódio que me marcou para a vida e que me fez decidir o futuro. Para desgosto de minha mãe, mas para óbvio benefício da saúde pública, abandonei o curso de medicina e dediquei-me ao jornalismo, uma paixão, entretanto, revelada.
Mas se conto, hoje, esta pequena história de vida, é porque, através dela, quero fazer uma sincera homenagem às equipas clínicas que estão na linha da frente do combate à pandemia que já infetou mais de um milhão de homens e de mulheres em todo o mundo.
E nós que, na área do jornalismo desportivo, estamos tão habituados a deformar a verdadeira dimensão das coisas, chamando herói a quem é apenas talentoso, enaltecendo de glórias e de títulos de adjetivação excessiva quem nos ajuda ao prazer do ócio, devemos cair na realidade e perceber, enfim, que herói é quem oferece a vida para salvar a vida dos outros.
Este é, pois, um tempo em que conseguimos, mais do que nunca, nas nossas vidas, perceber o que é verdadeiramente importante. E isso significa que sendo a sobrevivência o objetivo prioritário, isso não invalida que sejamos, agora mais do que nunca, capazes de entender que a vida é bem mais do que sobreviver. A vida é a liberdade que hoje sentimos tão condicionada, a vida é a alegria, a festa, o prazer de estar com os nossos e com os outros. E que para termos essa nossa vida de volta, precisamos, antes de tudo, de sobreviver à custa da coragem e do risco dos heróis que, nos hospitais, não podem teletratar, nem telecurar.