Por um futebol de camisola enfiada nos calções
John Mercado perseguido por João Neves (Foto: Miguel Nunes/ASF)

OPINIÃO Por um futebol de camisola enfiada nos calções

OPINIÃO23.01.202410:30

'Selvagem e sentimental', por Vasco Mendonça

Na semana em que o miúdo João Neves foi eleito, pela terceira vez, o melhor médio do mês, e completou a bonita marca de 50 jogos oficiais pela equipa principal do Benfica, volto a este miúdo formidável para celebrar o raro refúgio, inacessível nos mapas tradicionais, que é ver jogadores de futebol cujo comportamento no relvado espelha exatamente aquilo que mais jogadores deviam ser no relvado e aquilo o futebol devia ser mais vezes fora de campo. Há uma beleza particular em quem faz tudo isto quase sem tentar, sem agenda nem ideologia, e mesmo assim é capaz de comunicar multitudes. Não sei se toda a gente vê o mesmo que eu, mas o privilégio destes 50 jogos com João Neves dentro de campo, sempre com a camisola impecavelmente vestida, dão-nos acesso a um romantismo que parece extinto de vez e que, arrisco dizer, nos pode ensinar qualquer coisa. 

Comecemos pelo início, que é também o fim: João Neves entra em campo sempre devidamente aprumado. A sua marca registada é a camisola enfiada nos calções, uma escolha que nos faz parecer sempre que o jogo que estamos a ver é mais importante do que os outros. É mentira, como todos os Benfiquistas já perceberam. Se há coisa que João Neves demonstrou nos seus primeiros 50, é que não há jogos mais importantes do que outros. Todos os jogos contam na mesma medida. Em suma, tudo o que importa são as vitórias para conquistar ao serviço do Sport Lisboa e Benfica. Não me lembro de alguma vez ter visto João Neves interpretar a sua função enquanto atleta profissional de outra forma que não esta. Não consigo dizer o mesmo acerca de muitos outros jogadores. Apesar da exigência dos Benfiquistas, é sabido que toda a gente tem direito a um ou mais dias não, mas há quem, como o João, pareça abdicar deles em prol de uma causa maior. É também por isso, e não apenas pela sua qualidade e versatilidade futebolística, que devemos ensinar João Neves nos escalões jovens do Benfica. 

Ver alguém com a camisola oficial devidamente enfiada dentro dos calções é, antes de mais, reconhecer um gesto estranhamente antigo no mais jovem dos jogadores. É quase subversiva esta ideia de um futebol de tempos idos ser personificada por um rapaz com idade para ser tiktoker, mas isso só torna a coisa mais admirável. É, simultaneamente, antigo e completamente novo. E nunca passa despercebido. Vejo nesta decisão de indumentária um pequeno avanço civilizacional e um momento de semiótica magistral. Nunca imaginei vir a apreciar tanto um gesto tão simples como este. É evidente que o talento futebolístico de um jogador pode ajudar a confirmar o acerto de uma preferência estética, mas dificilmente me verão elogiar os cortes de cabelo ou as tatuagens de muitos dos melhores futebolistas do mundo. Nada tenho contra essa liberdade criativa, mas entusiasma-me mais que um gesto tão simples e desusado possa ser, hoje, um vislumbre de progresso.

A camisola enfiada nos calções denota um toque de superioridade, mas esta nunca resvala em arrogância. E por muito que a postura em campo e a forma como se apresenta equipado tornem João Neves um jogador objetivamente superior à maioria, este nunca perde a noção da sua responsabilidade em jogo, que é tanto a de chefe executivo quanto de membro do operariado. Os colegas sabem que podem sempre contar com a sua solidariedade, com o seu pragmatismo, com a sua abnegação, e com a sua inteligência posta ao serviço de um bem maior.

Por último, as boas maneiras. João Neves ocupa o relvado com o único intuito de ajudar o Benfica a vencer por meio da prática futebolística. 

Não o vejo perder tempo, não o vejo destratar adversários, e não o vejo condicionar árbitros. É notável observar como estes primeiros 50 jogos foram tão expressivos na articulação de uma ideia importante, a de que se pode vencer sendo decente na relação com os adversários. Atualmente, conhecemos demasiados jogadores e dirigentes cuja marca patenteada é diametralmente oposta a esta. Ao contrário do rapaz que enfia a camisola nos calções, o que mais encontramos são desfraldados orgulhosos que, à falta de melhor argumentário, usam e abusam de um expediente tantas vezes anti-desportivo. Das duas uma: ou a vida não deu maneiras, ou o clube que lhes dá abrigo patrocina essa forma de estar. Por exemplo, senti alguma vergonha este fim de semana quando, durante uma partida de futsal entre Benfica e Sporting, um desfraldado, imbuído das certezas garantidas por uma fraca inteligência, decidiu intervir num jogo e estragá-lo para todos. De um lado, as queixas legítimas. Do outro, os argumentos florais de um clube-alegadamente-diferente. Este é só um exemplo, mas quem lê jornais sabe que quase todos os dias o desporto em Portugal, e principalmente a família das modalidades futebolísticas, produz estes momentos deprimentes que nos deviam envergonhar um bocadinho. Sinto muitas vezes que estas modalidades mereciam perder adeptos até os seus responsáveis estarem dispostos a fazer mais.

Por isso digo: precisamos de mais jogadores e intervenientes que enfiem a camisola nos calções, antes de jogar, antes de falar, e até antes de pensar. Podem dizer-me que é apenas um detalhe ou que tudo isto é apenas a obsessão estética de alguém que apoia o Benfica e os seus jogadores. Estarão enganados ou, eventualmente, desapontados por não terem um jogador assim no vosso clube. Lamento. Mas prometo que o emprestamos à seleção, para poderem gostar tanto dele como nós.