O mal é mais profundo
Duas derrotas seguidas com Ajax e Belenenses. Dois jogos em que, valha a verdade, o Benfica criou oportunidades suficientes para marcar nove ou dez golos. Mas não marcou nenhum por culpa da ineficácia dos seus atiradores (até o experiente Salvio falhou um penalty)… e sofreu três. E de repente o Benfica entra em histeria. Há gente a reclamar cabeças e para já a do treinador é a mais solicitada. Uma erupção à Sporting! O belíssimo estádio do Jamor, onde o Belenenses ainda não tinha ganho um jogo, foi palco do primeiro psicodrama: o presidente Vieira desapareceu ao intervalo para parte incerta (muitos adeptos fizeram o mesmo, note-se) e houve quem visse nesse gesto um sinal relativamente ao treinador. Logo a seguir, que coincidência incrível!, foi descarregada na rede uma converseta pícara entre Vieira e o empresário César Boaventura [de dezembro passado] acerca de uma putativa ‘transferência’ (chamemos-lhe assim) de Rui Vitória para o Everton. O conteúdo está obviamente desatualizado mas deve ter cumprido o objetivo de quem lá a pôs. O episódio é mais estranho e obscuro do que as manigâncias que rodearam a saída de Jorge Jesus há mais de quatro anos.
Adensada a dúvida sobre o grau de confiança/conforto de Vieira com o treinador, cumpre dizer que Rui Vitória ajudou ao psicodrama não por ter falhado os tais nove ou dez golos cantados, mas com aquelas estapafúrdias declarações sobre rácios de vitórias na Champions (ele que perdeu NOVE dos últimos dez jogos nesta prova !…) e chavões como «há que saber conviver com o insucesso». Do ponto de vista futebolístico, repito, o Benfica não foi nenhuma miséria nem em Amesterdão nem no Jamor, embora sejam relevantes as criticas que têm sido feitas à gestão do plantel pelo treinador (como a que o José Manuel Delgado fez nestas páginas). Mas os adeptos, que trazem Vitória atravessado na garganta desde a perda do penta na Luz para o FC Porto, andam sem paciência nenhuma para discursos redondos. Não querem ouvir desculpas e muito menos tiradas iguais às que costumam ouvir nos treinadores das equipas pequenas. Admito que Rui Vitória esteja a bater recordes de rejeição no benfiquismo, mas não me parece que os gritos «vergonha, vergonha» que alguns adeptos mais excitados lhe atiraram no Jamor façam qualquer sentido. Vergonha é o que os benfiquistas andam a sentir há quase dois anos por causa das trapalhadas em que Luís F. Vieira & Paulo Gonçalves envolveram o clube -os e-mails, o Lex, as toupeiras (ainda ontem foi noticiado que a PJ encontrou várias transferências consideráveis de origem desconhecida nas contas de suspeitos). Isso é que é vergonha. Perder um jogo ou dois não é vergonha nenhuma. É futebol. Faz parte do jogo.
Tudo isto mostra o equilíbrio precário em que o Benfica vive desde que começaram a ser revelados os primeiros e-mails (dos padres e missas, como estarão recordados…) e as pessoas começaram a perceber que afinal o Benfica não era (como Vieira andou a apregoar anos a fio) a locomotiva da transparência e o acérrimo defensor da verdade desportiva. Há um mal de vivre palpável. Um incómodo permanente com o que se sabe e um receio daquilo que pode vir. Um mal estar passível de ser ruidosamente extravasado a qualquer momento. Basta as coisas correrem mal no futebol. Que os adeptos já não estão confortáveis com o treinador, é uma evidência. Nada do outro mundo. É um desgaste previsível, uma saturação normal. Jesualdo foi tricampeão no Porto e viveu o mesmo problema. Paulo Bento ganhou quatro taças no Sporting e viveu o mesmo problema. Jesus foi tricampeão na Luz e viveu o mesmo problema. O que me parece é que Rui Vitória está longe de ser o único alvo - e o único motivo! - da insatisfação encarnada. O mal é mais profundo.