O Catar e o efeito boomerang

OPINIÃO26.11.202205:30

A França apoiou o Mundial no Catar e com isso renovou-lhe a frota de aviões Mirage. Ainda acham que se trata de um simples jogo de bola?

NÃO existem grandes competições desportivas sem uma base de apoio e de envolvimento direto do poder político e económico. Não falo, apenas, nas missas da bênção pública em que participam os governos e outras autoridades civis e militares. Falo do verdadeiro poder político e económico e isso quer dizer um poder de dimensão internacional que, pode, inclusivamente, formar-se com aliados de interesses circunstanciais, mas comuns.

Hoje em dia não há comentador encartado ou descartado que não nos apareça, écran adentro, vociferando contra a implicação do futebol nas aberrações dos direitos humanos. Tudo isto, porque está neste momento a desenrolar-se um campeonato do mundo de futebol no Catar com a presença do Presidente da República portuguesa, o presidente da Assembleia da República e do primeiro-ministro. Que é um escândalo o país gastar o dinheiro que tanta falta lhe faz por causa de um simples jogo de futebol. Essa gente que faz da crítica avulsa e quase sempre ignorante o seu ganho de vida e de vaidade é cega ou é malformada.

As suas contradições não resistem a um sopro de bom senso. Se se trata apenas de um insignificante jogo de bola e, como dizem, de mero tempo de lazer, como justificar que esse acontecimento menor tenha sido aproveitado pelo governo francês para negociar com sucesso a renovação da frota de Mirages do Catar que, por sua vez, enviou os seus velhos aviões de combate para a Indonésia? E como explicar os gordos negócios de transição de gás natural para países que, de repente, passaram da oposição para o voto favorável do movimento de apoio ao Mundial no Catar patrocinado pela FIFA. E isso foi há mais de dez anos e nessa altura os nossos comentadores continuavam, como sempre, de olhos fechados a discutirem o sexo dos anjos da pequenina vida pública deste pátio das intriguinhas.
 

Marcelo Rebelo de Sousa no Portugal-Gana


Deviam ter vergonha de aproveitar o seu ganho na bolsa de valores da irracionalidade nacional que coloca, cada vez mais, o leitor, o ouvinte, o telespectador e, agora, o dedilhador de redes sociais numa posição de patós indefesos.

É verdade, não de há dez anos, mas de há muitas décadas, que os grandes acontecimentos desportivos (e não só) têm uma base suficientemente translúcida para deverem ser investigados por uma entidade reguladora independente. Eu fiz oito Campeonatos do Mundo e seis Jogos Olímpicos. Nenhum deles nasceu de qualquer ideia altruísta. Alguma vez se interrogaram porque razão o centenário dos Jogos Olímpicos passou de repente para Atlanta em 1996 e não se realizou em Atenas? Perceberam e discutiram a verdadeira razão e significado desses primeiros Jogos Olímpicos privados e dependentes do poder económico de organizações poderosas? E interrogaram-se sobre as verdadeiras razões de, em 2002, se ter dividido o Mundial de futebol pela Coreia do Sul e pelo Japão? Quem prometeu a um e a outro? E Os Jogos de Pequim, o que valeram fora das pistas e dos pavilhões? E o interesse de resolver internacionalmente o problema da integração dos aborígenes na Austrália? E o Mundial da Rússia - quem deu para esse peditório e porquê?

O Catar vem, agora, no caminho dessa conjugação de interesses públicos e privados, uns confessáveis com maior ou menor desvergonha; outros, nem isso. Só que o Catar que tem, com Mundial ou sem Mundial, a mesma conceção de valores humanos e de justiça social, é, apesar da sua riqueza, um país menos poderoso e por isso todos temos assistido a um efeito boomerang que leva a que o Mundo tenha, hoje, pior imagem do país e dos seus governantes e das suas imparidades sociais.
 

DENTRO DA ÁREA – UM NOVO OLHAR MAIS OTIMISTA

Vi jogar o Brasil e a Espanha, pus os dois pés na terra e passei a achar, francamente, que Portugal não é candidato ao título de campeão do mundo de futebol. Mais fiquei com essa certeza depois de ver a seleção portuguesa desrespeitar-se a si própria no jogo com o Gana. Mas veio o dia seguinte, horas dormidas sobre o assunto e lembrei-me de que em todas as andanças de quarenta anos de  Mundiais por esse globo fora muitas vezes a Taça foi ganha por quem pior começou. Portugal só pode melhorar. O Brasil e a Espanha só podem piorar...
 

FORA DA ÁREA – MAS, SÓ AGORA? PERGUNTA O PAÍS

De repente a notícia de que tinham sido detidos presumíveis atores de um filme de terror de migrantes escravizados em Portugal. E o país não abriu a boca de espanto, antes perguntou: só agora? E esta pergunta é, toda ela, uma acusação firme e poderosa à demora na investigação desses casos. Que eles existiam, os media mais sérios já disso nos tinham dado conta, mas faltavam as consequências. É tarde, mas será agora? Consegue-se, finalmente, ultrapassar estranhas barreiras colocadas no caminho e chegar ao essencial da justiça?