Minha laranja amarga e doce
A memória do lindíssimo poema de José Carlos Ary dos Santos cantado por Fernando Tordo no título de uma peça que não tem a ver com «cavalos à solta», mas com holandeses no caminho dos dois grandes lisboetas. Bom, os do Ajax foram de facto cavalos à solta nos anos setenta quando, liderados pelo génio de Johan Cruyff, ganharam três títulos europeus de enfiada depois de amargarem por duas vezes a vida ao grande Benfica de Eusébio. Um desses inolvidáveis holandeses voadores chamava-se Piet Keizer. Um extremo fabuloso cujo sobrinho, Marcel Keizer, era há um ano treinador do Ajax. Marcel foi convidado (verbalmente, esclarece ele) a tomar conta do futebol do Sporting numa iniciativa surpreendente do presidente Frederico Varandas, que terá visto em Keizer (nada a ver com o alemão Kaiser, que significa imperador) aquilo que mais ninguém viu: uma laranja doce e potencialmente sumarenta. Gostava imenso de saber o que levou Varandas a apostar neste treinador e quando se deu o click - a epifania. Não quero acreditar, como já ouvi, que a opinião de João Pedro Araújo, médico português do Al-Jazira a caminho do Sporting, tenha sido decisiva neste processo.
O Ajax de hoje não é tão forte como o de 70 mas, como diria Ary, tem alguns potros doidos capazes de fazerem a vida negra ao Benfica se este lhe der para repetir logo à noite a desgraçada exibição com o Moreirense. O Benfica sabe o que precisa fazer para não ficar liquidado: ganhar. Só esse resultado mantém os lisboetas na luta pelo apuramento. E mesmo assim é preciso que o Ajax ainda perca pontos em Atenas com o péssimo AEK, que tem sido o saco de pancada deste grupo. Por falar nisso, Rui Vitória levou uma sova de todo o tamanho dos adeptos no final do jogo como Moreirense - assobiadela estridente e uma revoada de lenços brancos [parecia a Cova de Iria a despedir-se da Virgem Maria] que a transmissão da BTV caridosamente ignorou - o pior é que o povo grava com os telemóveis e despeja tudo na rede; uma sova quase tão grande como a que um furioso Rui Gomes da Silva deu ao presidente Luís Filipe Vieira na última segunda-feira, na SIC : «a estrutura enlouqueceu», disse ele a certa altura.
Percebe-se um certo desnorte no benfiquismo e, valha a verdade, nem Rui Vitória nem Vieira têm ajudado a acalmar os adeptos. Cada um à sua maneira parece estar a viver numa realidade paralela. Vieira diz que vai «averiguar a sério» a existência da famosa cartilha e garante que só sai «quando o Benfica for campeão europeu» … precisamente quando preside ao pior Benfica europeu de sempre - aquele que perde nove dos últimos dez jogos na Champions. Mesmo os delírios de grandeza têm que ter alguma ligação à realidade para serem minimamente credíveis. Quanto a Vitória, suspeita-se que esgotou a reserva de truques e desenrascanços porreirinhos, à McGyver, que lhe garantiam a simpatia e condescendência dos adeptos. Parece baralhado (até nas contas), confuso, irritado com as insistências dos jornalistas, quiçá com as noticias sobre o regresso de Jorge Jesus e, se calhar, com o próprio presidente. Tudo isto acrescenta eletricidade, ansiedade e drama ao jogo de hoje. Há imensa gente a perguntar «e se…?». Recorro ao grande Ary, novamente com «Cavalo à Solta»: «Minha chama / minha réstia / de luz intensa/ de voz aberta / minha denúncia do que pensa / do que sente a gente certa».
O vizinho de Alvalade também já viveu tempos de maior serenidade (nos anos 40 e 50 do século passado, mais precisamente). À hora em que escrevo este texto, ainda não é certo que o desconhecido Marcel Keizer (Al-Jazira) seja o próximo treinador do Sporting. Os leões nunca tiveram um treinador holandês, mas da vizinha Bélgica já vieram dois, ambos péssimos por sinal: Robert Waseige no verão de 1996 (aguentou 16 jogos antes de ser despedido com justa causa) e Franky Vercauteren, no inverno de 2012 (aguentou 11 jogos antes de ser despedido com justíssima causa). Volto a Ary: « Minha laranja amarga e doce / meu poema / feito de gomos de saudade (…) minha passagem para o breve, breve instante da loucura» - antes de referir que Varandas faz muito bem em não estrear o novo treinador (Keizer ou outro) no jogo de quinta-feira, no estádio do Arsenal, que é uma espécie de lojinha de horrores do futebol português. É que esse jogo tem tudo para ser traumático, a julgar pelos desempenhos no Emirates do FC Porto (0-2, 0-4 e 0-5) e do Braga (0-6) na Champions - apanharam em conjunto 0-17. O Benfica jogou lá para a Emirates Cup (em 2014 e 2017) e também saiu goleado: 1-5 e 2-5. Tudo somado, seis derrotas e 2-27 em golos. Um horror. É a vez do Sporting tentar fintar o destino. Pelo que se viu em Alvalade, não será nada fácil.
Abu Dhabi-City e Qatar-PSG: fraudes
Os larguíssimos milhões incessantemente investidos no Manchester City pela elite reinante no Abu Dhabi (um dos Emiratos Árabes Unidos) e no Paris SG pela elite reinante no Qatar (outro estado árabe no Golfo Pérsico) não chegam para fazer a felicidade destes novos ricos na Europa. Felizmente. A Champions continua a fugir-lhes, ano após ano, mesmo beneficiando ambos da escandalosa complacência da UEFA perante o atropelo evidente das regras do fair-play financeiro. Por muito que goste de Pep Guardiola e de Bernardo Silva, por muito que aprecie o futebol de Mbapée, Neymar e Cavani, a verdade é que o Abu Dahbi-City e o Qatar-PSG não me suscitam a mínima simpatia. Porque são fraudes à competição normal. Porque jogam com outras regras. Porque tudo lhes é permitido. Como os fundos são inesgotáveis (provém de reservas estatais), não há limites nas operações de mercado nem prejuízos ou défices que lhes arrefeçam o entusiasmo (como acontece nos clubes normais). Arsène Wenger queixava-se disto com toda a razão. Pep quer dois defesas de 50 ou 60 milhões e o Abu Dhabi entrega-os na hora. Há um ano o Qatar gastou 400 milhões em dois jogadores para o PSG (Neymar e Mbapée) fingindo para a UEFA só ter comprado o primeiro - e a UEFA fingiu acreditar. Agora, pelo Football Leaks, percebemos que o presidente da FIFA, Gianni Infantino, ajudou o PSG e o City a contornarem as regras do fair-play financeiro quando era secretário-geral da UEFA. Fair… quê?