ENTREVISTA A BOLA «Centralização não será a grande solução do futebol português»
Francisco Lampreia esteve envolvido na venda de direitos em outros mercados. Diz que por cá estamos a fazer (quase) tudo mal sobre um negócio que será determinante para Portugal
A centralização dos direitos audiovisuais será um tema que vai marcar os próximos meses, para não dizer anos, do futebol português. Reinaldo Teixeira alertou para o problema, que considerou nuclear, quando tomou posse como presidente da Liga Portugal. O substituto de Pedro Proença reforçou que quando assumiu a Liga não existia na organização nenhuma proposta concreta para a venda dos direitos de broadcast. A BOLA quis olhar um pouco melhor para este tema, com alguém que noutros mercados, noutros negócios, já esteve envolvido na venda de direitos audiovisuais. Francisco Lampreia é gestor e no passado trabalhou em vários clubes. Passou pelo Manchester City e pelo Milan e esteve envolvido na venda de direitos da MLS e da Liga Saudita. Por cá, ainda falta perceber melhor como será o processo da centralização dos direitos audiovisuais de Portugal.
Estamos todos esclarecidos em Portugal sobre o que vai ser a centralização dos direitos audiovisuais da Liga?
Acho que é preciso desmistificar este tema da centralização, e os próximos meses e anos que aí vêm, porque a centralização não é o grande problema do futebol português e também não será a grande solução do futebol português. A centralização é um veículo absolutamente essencial para nós olharmos para a nossa Liga, e para a marca da Liga Portugal, de uma forma holística e começarmos a trabalhar de forma centralizada todos os verticais e todos os pilares que envolvem o negócio. A conversa devia estar muito mais evoluída e muito mais aberta sobre este tema. Daqui a 12 meses os clubes vão ter que votar a distribuição de uma potencial grelha e nada, ou nenhum estudo verdadeiramente concreto e vinculativo, é apresentado ou é discutido. Existiu aqui um período de criação da Liga Centralização, nos últimos dois ou três anos, e um enorme vazio sobre este tema. Temos uma votação para junho de 2026 que é absolutamente determinante para os próximos 50 anos do futebol português. Nós somos a única Liga das top 10 europeias que não tem os direitos centralizados. Isto já significa alguma coisa. As outras nove Ligas já adotaram a centralização e nós ainda continuamos aqui com este tema de: ‘será que o Decreto-Lei foi bem implementado ou não’. Há até alguns clubes que são contra a centralização. Eu tive o privilégio de falar com a maioria dos presidentes dos clubes da primeira e segunda Liga e vejo muito otimismo relativamente à centralização. Mas, nós não podemos ter uma disparidade de 1 para 15, que é uma autêntica vergonha nos dias que correm. Nós precisamos de aproximar o nível de recebimentos e de vencimentos audiovisuais dos clubes e perante isto temos de fazer um plano e encontrar uma estratégia que seja realmente vencedora no futuro.
Temos uma votação em junho de 2026 que é determinante para os próximos 50 anos do futebol português
Mas como é que se negocia quando os que ganham mais não querem ganhar menos e os que ganham menos dificilmente vão conseguir ganhar mais?
Quem vai determinar o valor realístico dos direitos audiovisuais vai ser o mercado. Não é a centralização ou um modelo de negociação individual à data de hoje que vai determinar se nós vamos receber mais ou menos. Portanto, o mercado e os próprios fenómenos do mercado é que vão ditar quanto é que vale o futebol português no futuro. Ouço falar muitas vezes que o nosso modelo tem que ser igual ao da La Liga, o que eu considero um autêntico disparate. O nosso modelo tem que ser muito personalizado. O nosso futebol tem características muito próprias. Nós não somos iguais nem à Premier League, nem à Série A, nem à Bundesliga, nem à La Liga, nem à Ligue 1. Portanto, nós temos que ter um formato muito próprio e eu costumo dizer que temos que fazer um fato à nossa medida, ajustado ao futebol nacional. Há dez anos realmente o mercado estava em alta. A centralização em Espanha deu o kickoff e os direitos em Espanha subiram 90%. A Premier League, onde eu estive envolvido, vinha de um ciclo anterior a 2014/15, com um crescimento de 60% e cresceu mais de 70%. Estamos a falar de um crescimento numa década de 120% a 130%. A Bundesliga, no mesmo período, subiu 75%. Tudo com modelos centralizados. A nossa Liga também passou para o dobro, em 2015-2016, com os direitos individualizados. Portanto, não é a centralização ou o modelo de negociação individual que vai ditar quanto é que vale o bolo total dos direitos audiovisuais. É o mercado! O que é que acontece hoje, passados dez anos? Nós temos a Premier League, nos direitos domésticos, a subir 4% e nível dos direitos internacionais, subiu 27%. A Premier League é um absoluto fenómeno, mas tem 30 anos de operação. Mas, neste momento estagnou a nível de direitos domésticos e os mercados internacionais continuam a subir porque a Premier League está em 212 territórios. O que é que aconteceu com os nossos queridos amigos espanhóis da La Liga? Crescimento doméstico de 1%, estagnado. Crescimento internacional, residual. Portanto, podemos considerar que a La Liga teve um ciclo quase idêntico com direitos estagnados. Na Alemanha o crescimento de direitos domésticos foi de 2% e os direitos internacionais subiram residualmente. Portanto, estagnaram também. A Itália decresceu e perdeu cerca de 5%. A nível de direitos internacionais, perdeu o valor que tinha e mercados como o Reino Unido não compraram a Série A. Itália está neste momento a fazer um modelo de subscrição direta ao canal. Em França o objetivo era chegar a 1 bilião e chegaram a 500 milhões. Houve um decréscimo, face ao que tinham no ciclo anterior, de cerca de 35% e pode baixar ainda mais. Em França é um cenário catastrófico, de uma perda que vai rondar os 50% a 60%. O que quero dizer é que os direitos domésticos nas principais ligas europeias estão estagnados ou em perda. Mas nós, em Portugal, parece que anunciámos que íamos ter crescimentos exponenciais, quase para o dobro. As expectativas criadas são enormes. O André Villas-Boas veio dizer que não vinha aí a galinha dos ovos de ouro, e eu tenho que concordar: não vem aí a galinha dos ovos de ouro. Nós temos que nos ajustar aos tempos, às tendências e ao padrão em que vivemos.
E o que é que Portugal tem de aprender com essas outras ligas que estagnaram internamente?
Acho que Portugal não está a olhar de forma séria para nenhuma das vertentes que são absolutamente essenciais. Nós, basicamente, temos conhecimento de uns estudos não vinculativos, que criaram expectativas não vinculativas, e temos os presidentes dos clubes à espera que essas expectativas sejam realidade. A má notícia é que não vão ser. As expectativas que foram criadas não são realistas. Ninguém teve acesso a um estudo sério do modelo de comercialização. Como é que nós nos vamos diferenciar, principalmente a nível dos direitos internacionais, que estão muito abaixo daquilo que devia ser a média europeia? Nós só vamos conseguir crescer o valor do nosso produto quando conseguimos mais consumidores e mais adeptos a consumir. E só vamos conseguir isso nos mercados internacionais porque o mercado doméstico está mais ou menos alinhado. A grande questão é como é que nós vamos conquistar estes novos mercados internacionais, que estão inundados de conteúdo de futebol. Como é que Portugal vai criar conteúdos personalizados para os diferentes mercados que existem e qual vai ser a nossa estratégia? Era essa a discussão que eu gostava de ver.
André Villas-Boas veio dizer que não vinha aí a galinha dos ovos de ouro, e eu tenho que concordar. Nós temos que nos ajustar aos tempos, às tendências e ao padrão em que vivemos.
«Choca-me que se tenha investido 30 milhões de euros numa sede nova para a Liga, em vez de se investir em conteúdos»
O Benfica já fez questão de reforçar que não vai perder dinheiro com a centralização, nem vai abdicar de princípios e de valores que considera cruciais. Como é possível chegar a um entendimento com posições tão vincadas?
Antes de chegarem a um entendimento, tinham de sentar-se à mesa e definirem quais os parâmetros que estariam todos dispostos a aceitar, para o bem do futebol português. Parece que isso aconteceu há um par de meses, mas agora já não acontece. É uma pena porque, efetivamente, o Benfica, os outros clubes grandes, incluo o SC Braga e o Vitória Sport Clube nesse lote, têm que ter uma responsabilidade acrescida na gestão e na liderança deste projeto da Liga Centralização, pois representam 95% da massa adepta do futebol português. São altamente representativos e os três ditos grandes representam 75% das receitas. O Benfica tem, efetivamente, uma responsabilidade acrescida, mas também tem de olhar para o produto Liga Portugal e assumir uma liderança, porque nós não podemos ter uma disparidade de 1 para 15. Não podemos ter a maioria dos clubes a passar por grandes dificuldades financeiras e outros a quererem olhar para si próprios. Portugal é altamente dependente das receitas europeias. Dependemos 25% das receitas das competições da UEFA e ninguém quer nivelar o futebol português por baixo, nem a nível doméstico, nem a nível internacional. Nós temos que nivelar e construir o produto do futebol português como um todo. Mas, ao ter esta disparidade tão grande, os pequenos vão ficar mais pequenos, os médios vão ficar mais pequenos e os grandes também vão ficar mais pequenos. Estamos já em queda e ainda nem começámos com o modelo de centralização. Isto é o reflexo de não termos pensado, não termos planeado e não termos olhado para isto com olhos de negócio. Não gosto de falar em perdas dos direitos audiovisuais, pode haver uma diminuição de receitas. Tamos de encontrar mecanismos de compensação para os clubes ficarem satisfeitos a curto prazo, numa perspectiva de 10, 15 ou 20 anos, e perceber como é que ao longo prazo vamos conseguir compensações, para que ninguém fique com prejuízo. E, se me permite, eu gostava muito de dar o exemplo do Brasil pois temos muitas semelhanças. O Brasil, neste momento, está num processo de criação de Liga e houve um grupo que se juntou com os ditos grandes e outro que se juntou com os médios e com os pequenos. Os médios e os pequenos acharam que havia mais valor no mercado do que aquele que a TV Globo estava a pagar. Os grandes não quiseram acreditar nesta versão e renovaram um novo ciclo com a TV Globo. Os clubes médios e pequenos, liderados pelo Corinthians, conseguiram 55% de crescimento, com Amazon, Youtube, TV Record e ainda venderam um pacote à Globo. Os clubes grandes venderam tudo à Globo e um grande clube como o Flamengo perdeu 500 milhões de reais neste novo ciclo e entrou em perda quando o futebol brasileiro está em crescimento. O Flamengo, neste momento, está a querer olhar para esta diminuição de receita e ver onde é que pode encontrar novas fontes de receita que compensem realmente este fenómeno. Este exemplo define muito bem o que poderá vir a acontecer aqui.
Qual é o fato à medida da Liga Portuguesa?
O contexto não é o ideal e as pessoas que estão na Liga vão ter que encontrar as melhores soluções para os direitos domésticos. Nos direitos internacionais é que acho que vai ser o grande desafio. Ninguém paga mínimos garantidos e nós temos, in house, de produzir uma media house superpotente a criar conteúdos diferenciadores para começar a penetrar em mercados absolutamente essenciais que hoje não têm nenhum tipo de contacto com o futebol nacional. Este trabalho vai ter que ser feito e choca-me que se tenha investido 30 milhões de euros numa sede nova para a Liga, no Porto, que os clubes vão ter que começar a pagar muito em breve. Parece que não saímos do paradigma da construção civil e pergunto-lhe se esses 30 milhões não seriam melhor investidos numa media house, com gente supertalentosa, a criar conteúdos? É mais rentável rentabilizar um espaço como a sede da Liga ou fazendo novos conteúdos internacionais e vende-los a novos mercados? Vivendo num mundo digital não será melhor vender os conteúdos do que alugar o piso 2 ou o piso 3 da nova sede?
)
Vivendo num mundo digital não será melhor vender os conteúdos do que alugar o piso 2 ou o piso 3 da nova sede da Liga no Porto?
Mas sabe que os clubes hoje em Portugal estão cada vez mais fechados a comunicar?
Sei e já passei por isso várias vezes na minha carreira. Passei por isso no City, passei por isso no Milan, em que os balneários eram fechados. Em que o acesso era fechado. Mas alguém se preocupou em explicar aos intervenientes portugueses que realmente precisam de abrir os balneários? Que precisam de abrir os clubes e que têm de se dar a conhecer? Que o adepto não quer só ver os 90 minutos live e quer conhecer a realidade? Os investidores internacionais não podem achar que Portugal é fechado. Não podem achar que a centralização vai ser um fracasso total, porque senão não voltam. Só é pequenino quem quer, e nós temos efetivamente um país com a dimensão que tem, isso não muda, mas o mundo virtual é gigante. Depende de nós de que tamanho queremos ser.
Que conselho dá aos clubes portugueses nesta altura?
Que tenham muito cuidado com as expectativas que foram criadas. A realidade poderá ser bem diferente e penso que está na hora de analisarmos com estudos realistas, com dados concretos e começarmos desde já a desenvolver um plano de comercialização que efetivamente nos indique vários caminhos e depois os clubes decidam qual o melhor. Penso que este é o ponto em que estamos hoje.
Muito bem, Sr. Lampreia. Porém, teremos de saber vender bem o nosso produto, como país que mais atletas, treinadores, e, agentes e de elevada craveira, oferece ao mercado internacional! E, já agora, não esquecer também, de que, o Vitória Sport Clube, sendo o 4.º, que mais adeptos arrasta para as bancadas em casa e fora, distando para o 5.º, uma média superior a 100 mil por época, (além do que mais Presenças tem na I Liga, depois dos 3 grandes), merece encaixar proventos próximo dos ditos cujos. Força Vitória!