No Portugal-Chéquia foi batido o recorde de espectadores num jogo de futebol feminino em Portugal
0 seconds of 2 minutes, 35 secondsVolume 90%
Press shift question mark to access a list of keyboard shortcuts
00:00
02:35
02:35
 

A partir de hoje, em A BOLA, as mulheres são ‘médias’ e ‘avançadas’

FUTEBOL FEMININO05.03.202508:50

Especialistas da Língua Portuguesa não encontram razão, a não ser o hábito, para não se usar o feminino nas posições das futebolistas. Outras línguas de raiz latina já o fazem

Se mostrarmos a uma criança do ensino básico a seguinte frase: «A médio passou a bola à avançado e esta marcou» — que dirá a criança, que ainda agora aprendeu a ler e a escrever? Óbvio: dirá que está errado.

Por razões várias, mas sobretudo pela enorme hegemonia masculina sobre o futebol — própria da sociedade ainda patriarcal, misógina e machista — quando o futebol feminino começou a emergir foi convencionado (poder-se-ia escrever autoconvencionado pelos homens que dominam o desporto) algo como «as posições no campo são médio e avançado, elas jogam a médio ou a avançado». Elas foram aceitando. Afinal, o fundamental era que começassem a reconhecê-las como futebolistas e a deixar de olhar de lado para a prática do jogo por meninas e mulheres. E devem começar-se as empreitadas pelo mais importante. A empreitada, diga-se, está longe de concluída, mas numa altura em que se assiste de forma exponencial, Mundo fora, ao eclodir do futebol praticado por mulheres, será hora de começar a afinar detalhes.

«Já estou tão habituada que não associo a masculino ou feminino, mas a termos futebolísticos. Defendo, sim, que devemos ser tratadas e respeitadas como mulheres. Quanto ao médio ou média depende do contexto, mas também acho que se começa a ter mais atenção a essas coisas quando se referem a nós», afirma Dolores Silva, média do SC Braga e capitã da Seleção Nacional.

Dolores Silva, jogadora do SC Braga e capitã da Seleção Nacional. FOTO ANDRÉ ALVES
Dolores Silva, jogadora do SC Braga e capitã da Seleção Nacional. FOTO ANDRÉ ALVES

Edite Fernandes, ex-internacional (aqui, como nas guarda-redes e nas defesas, não há o problema do género no substantivo) que conquistou dez títulos de campeã nacional e três Taças de Portugal, é mais assertiva, talvez por já ter deixado a competição e se encontrar agora, entre outras funções, do lado do comentário de jogos: «Independentemente de o futebol ter sido vários anos só para o masculino, eu achava injusto que nos chamassem médios ou avançados. Somos mulheres, não é? Temos direito a que as posições no campo reflitam isso na linguagem. Os tempos evoluíram.»

A «estranheza»

Lúcia Vaz Pedro, especialista em Língua Portuguesa, admite que «a permanência do masculino dever-se-á ao facto de ser um jogo tradicionalmente levado a cabo por homens», mas lembra que «as línguas, sendo vivas e dinâmicas, estão em permanente mutação, adaptando-se a novas realidades».

«Segundo a Nova Gramática do Português Contemporâneo, quando o nome é masculino existe a possibilidade de formar o feminino, seguindo a regra dos substantivos terminados em –o átono. Assim, é aceitável dizer-se a média, a avançada, a extrema, etc.», acrescenta a professora.

Marco Neves, outro especialista consultado por A BOLA, corrobora a ideia da predominância histórica masculina e lembra que «se dizia a primeiro-ministro Maria de Lourdes Pintassilgo» quando em 1979 ocupou o cargo durante seis meses, a convite do então Presidente da República Ramalho Eanes.

Maria de Lourdes Pintassilgo era 'a primeiro-ministro' em 1979. FOTO IMAGO
Maria de Lourdes Pintassilgo era 'a primeiro-ministro' em 1979. FOTO IMAGO

«Chegou a falar-se também da senhora ministro. Em França, por exemplo, houve uma grande insistência na altura para que se usasse o masculino. Mas depois, com o andar do tempo, as formas femininas começaram a tornar-se habituais», explica Marco Neves.

Justamente: em França e Espanha, com línguas vizinhas e de origens comuns ao Português, as jogadoras são tratadas no feminino quando o substantivo não é comum aos dois géneros, e esse é o argumento final de A BOLA para adotar de vez esta prática.

«Apostaria que daqui a uns anos estaremos a ouvir falar, com a maior naturalidade, em avançadas e médias», conclui o professor.

Conversa puxa conversa e ao falar de detalhes como este torna-se inevitável que venha à baila a igualdade noutros setores, admitimos que bastante mais importantes. Diz Edite Fernandes: «Estamos a construir o nosso caminho, a ganhar o nosso espaço. Há mais investimento e mais retorno, mas sinceramente acho que as mulheres nunca serão remuneradas ao nível do futebol masculino.»

Não sabemos. Mas os caminhos fazem-se caminhando, e nem sempre é avisado desvalorizar pequenas conquistas. A BOLA dá o contributo, passando a usar o feminino em relação às posições das futebolistas. O andar dos tempos dir-nos-á sobre tudo o resto.