Vassalagem!...
No meu tempo, quando queria apresentar cumprimentos ou reunir com um secretário de Estado pedia uma audiência
TENHO vivido estes últimos dias num misto de tristeza e revolta com o falecimento do meu (e muitos, muitos mais) amigo do Sérgio Abrantes Mendes. Tristeza porque é um amigo que parte e nos deixa mais pobres; revolta porque, por mais que custe dizer, vivemos um tempo em que há muita gente que não devia viver, porque não faz cá falta nenhuma, antes polui o ambiente moral, que, a meu ver, é bem mais grave que o ambiente atmosférico que respiramos.
O Sérgio, juiz de alma, coração e profissão, frequentava o meio desportivo e foi seu dirigente. E é um exemplo concreto de que as decisões do Conselho Superior da Magistratura, no sentido de vedarem a certos juízes exercerem diversos cargos no sistema desportivo, estão, na minha modesta opinião, erradas no seu fundamento. A questão não pode ser vista do ponto de vista de o juiz não se poder envolver na gestão do desporto só porque é juiz e nele se não respira por vezes um ambiente compatível com a dignidade de quem pertence a um órgão de soberania. O que deve impedir esse exercício de dirigente, como o exercício da magistratura, é a sua falta de personalidade e carácter, para o exercício da sua profissão ou cargo de direcção qualquer que seja a actividade. Há, efectivamente, dirigentes que não têm carácter que sirva de exemplo para as pessoas que praticam o desporto, como há juízes que exercem a sua magistratura, não de influência, mas por influência. O problema não está na profissão ou no cargo, mas sim na personalidade e no carácter, que, infelizmente, deixou de ser essencial para o exercício de cargos públicos.
O Sérgio foi juiz e dirigente desportivo e é um exemplo de que as funções são compatíveis com a dignidade que as mesmas exigem. E houvesse mais como ele (juízes e outros) e o ambiente seria bem melhor. Com dignidade, sem necessidade de prestar vassalagem a quem quer que fosse e sem prejuízo do grande amor ao Sporting, que nunca toldou ou perturbou o seu juízo crítico e independente.
Vivemos o tempo do 25 de Abril, que alguns dizem não ter chegado ao futebol, mas eu sou mais abrangente porque acho que o 25 de Abril ainda não chegou a muitas mentalidades e por isso não pode chegar a certas actividades.
Acresce, que vivemos demasiado dependentes de um Estado sufocante e por isso temos de pagar a elevada factura dessa dependência. Vivemos demasiado dependentes do poder e, por isso, a vassalagem mental e material tornou-se vulgar como modo de ascensão social ou de sobrevivência. Vivemos do favor e não do mérito.
Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Correia, esteve na quinta-feira no Dragão, para um almoço com Pinto da Costa
Não é preciso inventar, bastando ir a qualquer enciclopédia ou dicionário para perceber que vassalagem, na Idade Média, consistia num acordo de serviços recíproco entre uma pessoa política e economicamente menos influente e uma outra que sob esses aspectos lhe era superior. O fenómeno era (e é) próprio de um sistema feudal, que considera pilar do equilíbrio político, militar e económico a divisão do território e o regime de propriedade decorrente disso. Vassalo era uma pessoa que tinha uma obrigação mútua a um senhor ou soberano, no contexto do sistema feudal da Europa medieval.
Dizem que o sistema de vassalagem teve origem durante a decadência do império romano, com a chegada dos povos bárbaros e, por consequência, de uma nova necessidade de organização. Embora certamente descabida e inócua, a minha opinião é que sinto a Europa numa situação decadente semelhante ou a lembrar a queda do império romano, sem necessidade da chegada dos bárbaros porque eles já cá estão há algum tempo, e muitos deles até lideram algumas instituições.
Por cá, há ainda muitos sistemas de vassalagem, desde a economia à politica, na vida pública e na privada, e cada vez mais os médicos têm de se preocupar com as doenças de coluna vertebral dos homens que, tal como o Teodoro, essa personagem detestável do Mandarim de Eça de Queiroz, ficam corcundas de tanto se curvarem perante o chefe!
Curiosamente, no desporto em geral e no futebol em particular, existe um sistema de vassalagem, tipo capicua: sistema de vassalagem do sistema!
Ontem de manhã, quando acordei e fui ler este jornal, sob o título, «Passo para a normalização das relações com a Secretaria de Estado da Juventude e do Desporto», deparei com a noticia de que o senhor secretário de Estado da Juventude e do Desporto se deslocou ao Estádio do Dragão para almoçar com Pinto da Costa, presidente do Futebol Clube do Porto, tendo no final declarado ter sido uma reunião proveitosa, mas nada disse sobre o proveito da refeição. Espero que não tenha sido leitão...
Por sua vez, Pinto da Costa revelou que foi um almoço de apresentação, o que para mim, e julgo que para a maioria dos mortais, significa que o secretário de Estado foi apresentar-se ao presidente do Futebol Clube do Porto: sou o novo secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Correia, e venho apresentar os meus cumprimentos!...
No meu tempo de dirigente desportivo, isto é, ainda não há muito tempo, quando queria apresentar cumprimentos ou reunir com um secretário de Estado ou com um ministro pedia uma audiência para apresentar esses cumprimentos ou para tratar de qualquer assunto. Julgo que continua a ser assim, num país normal.
Por acaso, e meramente por acaso, ou talvez por causa do leitão, lembrei-me de António Costa e Fernando Medina na Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira, dez meses depois detido pela suspeita da prática de crimes...
Devo confessar que me deu vontade de chorar ao perguntar a mim mesmo: em que País vivo? Será este o novo sentido de Estado? Será que, agora, sentido de Estado é o ministro das Finanças ir almoçar aos bancos com os banqueiros? Ou o ministro do Trabalho ir aos sindicatos almoçar com os sindicalistas? Por que não o Conselho de Ministros passar a reunir em certos estádios? Talvez o ministro do Ambiente tivesse uma palavra a dizer, tal o mau cheiro que tudo isto provoca.
Tudo isto parece anedota, que, em tempos idos, foi motivo de demissão de um ministro. Ainda havia algum pudor!...
De fonte credível tive a informação de que nem Sérgio Conceição, nem a ANTF, nem Hugo Miguel, nem a APAF, nem o Eng.º Luís Gonçalves estiveram no almoço. Taremi tropeçou na ombreira da porta quando ia a entrar... E não se falou de nenhum deles: enquanto se come não se fala!...
Assim inspirado, escrevi então esta minha crónica, cujo título é mera ficção e pura coincidência!.