Vamos lá pensar o futebol português!
SOARAM as campainhas de alarme. A classe alta do futebol português foi arrasada, sem dó nem piedade, pela classe média do futebol europeu. Afinal, a terrível realidade foi descoberta: Os grandes nacionais não passam de uns pequenos internacionais. A mim, confesso, não me surpreende. Há muito tempo que o dizia, mas estávamos colocados na prateleira dos desestabilizadores, dos antinacionalistas, dos agentes da maledicência. E nós insistíamos que não podíamos deixar de pensar o futebol português só porque, de repente, tínhamos uma grande seleção e alguns dos melhores jogadores e treinadores do mundo. Os melhores jogadores emigraram, os melhores treinadores também e, para cúmulo, o mundo dos empresários tornou-se muito mais influente do que o mundo dos entendidos em scouting e, de repente, apesar de terem aumentado generosamente os valores das comissões pagas e distribuídas nas transferências de jogadores, a verdade é que os novos jogadores são cada vez piores e, em alguns casos, de uma qualidade indigente, o que não significa que tivessem sido indigentes os negócios que proporcionaram.
FICAMOS por tal constatação, para justificar a queda livre dos clubes portugueses em relação à média europeia? Definitivamente, não. Não desvalorizamos a evidente importância de se escolher cada vez mais o plantel em função do negócio e não da qualidade, do rigor ou da eficácia desportiva, mas temos de admitir que não é essa a única razão. Outras existem e delas aqui pretendemos falar sem meias tintas. É a função do jornalista. Não na qualidade de especialista do jogo que, essa, é a missão dos treinadores e de mais técnicos do futebol, mas na qualidade de observador atento e que deve assumir, sem subserviências e com verdade, uma atitude ativa no escrutínio de uma atividade que envolve milhões, não raras vezes de rasto perdido.
TREINO. Falemos do treino no futebol português. Temos o contentamento, eventualmente, justo de exportar saberes por esse mundo. Centenas e centenas de treinadores portugueses trabalham em clubes de futebol em todos os continentes. Porque sabemos mais do que os outros? Sim, porque aprendemos que quanto mais pequeno é um país de futebol e quanto menos competitiva é a economia desse país, mais temos de pensar o jogo, mais temos de encontrar soluções técnicas, táticas, enfim, humanas para o melhorar e para sermos melhores, sem sermos maiores. Aconteceu com Portugal, aconteceu, também, com a Holanda, países onde a Alemanha, a Inglaterra, a própria França, até a Itália, vieram aprender uma nova maneira de treinar numa perspetiva integrada de um jogador - um homem-um todo, com as suas circunstâncias de jogo, espaço, bola, balizas, adversário. Aí, criámos e inovámos. Como juntámos a esse inovador conhecimento a característica humana de nos adaptarmos a novas culturas, a novas gentes, a novos climas, a novas latitudes, o resultado foi uma emigração de quadros de superior qualidade, que conseguiu evoluir, ainda mais, num contexto de organização mais competente, de seriedade de processos e, last but not least, de maior conforto financeiro. Quanto aos que cá ficaram, tiveram menos condições, sobretudo no que respeita à qualidade dos jogadores, à qualidade da organização e à qualidade do que se pode denominar a saúde do jogo. Por isso, aos que ficaram não bastaria repetir o que aprenderam, mas continuarem a tarefa de, continuamente, estudarem o jogo e o treino. Julgo que não só não o fizeram, como, em muitos casos, perderam uma visão global, não percebendo que o treinador português, sendo realmente bom, não sabe tudo, nem tem todas as competências e também ele precisa de aprender com o que de melhor se faz lá fora. Nesta última jornada europeia, quem esteve minimamente atento reparou num exemplo de claro défice das equipas portuguesas na intensidade de jogo. Quando têm bola e, sobretudo, quando a procuram ganhar ao adversário, algo que, na maior parte das vezes, fazem de forma indolente, descoordenada, desequilibrada, sem perceber o que Pep Guardiola sabiamente dizia do seu Barcelona: «Quando não temos bola, temos de saber ser lobos, em alcateia, para a caçar.» Nós apenas somos cordeiros, à espera que ela nos chegue oferecida por um qualquer erro do adversário, algo que, sem estar pressionado, o adversário raramente comete. E a questão é: será que não temos, como outros, condições de resistência física para jogar com aquela intensidade o tempo todo? E a resposta, a meu ver, será, teremos essa resistência se a equipa estiver como «lobos em alcateia», equilibrada, organizada e, por isso, cada jogador não precisar de correr mais, mas de correr melhor.
É verdade que ter mais dinheiro para ter os melhores treinadores e os melhores jogadores também será uma razão óbvia. O problema é que não estamos a falar dos big five, exceção feita ao adversário que calhou ao FC Porto e que, mesmo assim, não entra no pódio do futebol alemão. Estamos a falar da Escócia, da Ucrânia e da Turquia. O Rangers, que apenas tenta chegar aos calcanhares do Celtic, destruiu o SC Braga como se Rúben Amorim tivesse apenas construído um castelo de areia; o Shakhtar foi demolidor, na Luz, sempre que precisou de ir à procura do golo. O desconhecido Basaksehir arrasou um Sporting que nem conseguiu impor em campo os princípios mais elementares de uma equipa de futebol, porque metade da equipa só atacava, a outra metade só defendia e, entre todos eles, alguns não lhes apetecia nem atacar, nem defender, só queriam mesmo era verem-se dali para fora. Foi, de facto, no conjunto das quatro dizimadas equipas portuguesas, uma imagem de desolação e de impotência. Não assumir isto, é um crime de lesa futebol português. Não querer perceber o porquê disto ter acontecido é uma manifestação de miséria cultural. E deixamos para o fim a questão mais sensível, talvez, a mais importante, porque estrutural e que deve merecer um espaço próprio de reflexão. Temos de aceitar discutir um novo paradigma de organização dos clubes de futebol profissional no nosso país. Com tempo e sem preconceitos, antes que, mais cedo do que tarde, alguns desses clubes, na urgência do terror de uma surpreendente finitude, acabem por se deixar cair nas garras dos abutres... que já voam por aí.