Um olhar sobre a formação

OPINIÃO05.04.202106:05

O segredo está no equilíbrio. De clubes, jogadores, treinadores, pais, empresários e adeptos. Mas equilíbrio é coisa que por cá falta

F ALAR de formação é, em Portugal, tema sensível. Há demasiados interesses envolvidos - a começar pelos dos próprios jogadores, passando pelos dos treinadores, dos clubes e de pais e empresários... - e demasiadas variantes que devem ser levadas em conta. Não é preto ou branco, há (muitas) outras cores pelo meio. Sim, a formação é, de há uns anos a esta parte, uma bandeira que os clubes portugueses gostam de acenar quando as coisas correm bem. E da qual fogem a sete pés quando as coisas correm mal. É, também, assunto delicado para sócios e adeptos, que o debatem com orgulho quando a sua equipa ganha e lança uns jovens e o desprezam quando, com demasiados jovens num plantel, justificam os maus resultados com a falta de experiência - teve, nisso, alguma razão Luís Filipe Vieira quando se referiu à bipolaridade (o termo é meu) dos adeptos do Benfica, satisfeitíssimos com os exemplos de João Félix ou Rúben Dias mas incapazes de acreditar na visão de um Benfica dominador na Europa através do Seixal que o presidente sempre defendeu para o clube e do qual se afastou (num sinal de fraqueza, para já sem quaisquer resultados práticos, por parte de quem sempre apregoou ser, o Benfica, comandado de dentro para fora e não de fora para dentro) por força da pressão eleitoral.
Se quisermos, de facto, discutir a formação de uma forma séria há que ter em conta todas as suas variáveis. A começar pelo indesmentível facto de não haver, mesmo nas melhores academias do mundo, uma fonte inesgotável e ininterrupta de talento. Não há Figos, Cristianos Ronaldos ou Ricardos Quaresmas a sair de Alcochete todos os anos. Nem Renatos Sanches, Rúbens Dias ou João Félix do Seixal. Nem Fábios Vieira, Diogos Leite ou Franciscos Conceição do Olival. As coisas são como são. Em Portugal e no estrangeiro. Ou seja, não é pelo facto de as coisas terem corrido bem na promoção de uma fornada de jovens jogadores formados em casa numa época (ou em duas ou três) que terão, forçosamente, de correr bem para sempre. Dizer  que se pode ser sempre campeão com jogadores da formação só porque se foi com eles campeão uma ou duas vezes é uma falácia. Pode querer-se muito, mas não vai acontecer.  E esse é o primeiro erro cometido pelos adeptos quando se fala de formação.
Há, depois, o segundo erro, cometido, amiúde, por quem manda nos clubes portugueses, incapaz, de uma forma geral, de deixar a navegação à vista que é ditada pelos resultados e, lá está, pela pressão dos adeptos. Em clubes profissionais e organizados como são (ou deviam ser) pelo menos os três ou quatro grandes em Portugal, identificar os jogadores de uma geração que podem, de facto, singrar ao mais alto nível é obrigação de quem manda e que tem (ou devia ter) uma estrutura pensada com o objetivo de pensar plantéis que permitam o equilíbrio entre aqueles que são os interesses desportivos e a integração daqueles que, saídos das academias, podem explodir na equipa principal. Mas a verdade é que há, por cá, pouco planeamento. Os jovens são, normalmente, lançados por desespero: não há outro, avança quem há. Se as coisas correm bem mantém-se a aposta, muitas vezes forçando o que não pode ser forçado. Se correm mal (e, perante a falta de uma estratégia bem delineada, mais tarde ou mais cedo acabam por correr mal) inverte-se totalmente o rumo, apostando em jogadores feitos e caros - mesmo que de valor duvidoso - e tapando todas as possibilidades de quem espera por uma oportunidade para crescer. E, sem equilíbrio, o período temporal entre o aparecimento de duas gerações de ouro dobra. Até que, por falta de dinheiro ou por outro imponderável qualquer, lá tem de se recorrer à formação. E corre bem. E lá volta a bandeira da formação. É um ciclo vicioso de que os clubes portugueses não se conseguem, infelizmente, livrar.
 

 

H Á, depois, os interesses de jogadores e treinadores, que nem sempre convergem. É um tema interessante, que ganhou dimensão primeiro quando Rúben Amorim convidou os jovens jogadores indecisos quanto ao rumo a darem às suas carreiras a optarem pelo Sporting, onde, de facto, agora se aposta neles; e depois quando, anteontem, Jorge Jesus falou sobre os jovens que têm integrado os trabalhos do plantel principal do Benfica.
Começando pelo Sporting: foi inteligente Rúben Amorim ao convidar jogadores, pais e empresários a apostarem em Alcochete como palco preferencial para progredir na carreira, apostando as fichas num treinador que não tem medo (por necessidade ou por princípio ou por ambos) de lançar miúdos. Toda a gente sabe que o sucesso da formação está na base de recrutamento: quantos mais miúdos quiserem ir para uma academia mais possibilidades há de, entre eles, aparecer talento. O Sporting, que muitos acusaram, e com razão, de ter abandonado a formação quando os resultados não apareceram, volta às origens e parece no bom caminho para retomar a posição que lhe fora, entretanto, roubada pelo Benfica. Resta saber se quando as coisas voltarem a correr menos bem - como, inevitavelmente, voltarão a correr, porque não há, em Portugal nem em país algum, clube que ganhe para sempre - conseguirão os atuais dirigentes do Sporting (com ou sem Amorim) resistir à pressão e manter esse rumo.
Passando ao Benfica. Disse Jorge Jesus uma coisa muito acertada na conferência de imprensa de anteontem. Há, de facto, à volta dos jovens jogadores interesses que lhes estragam, infelizmente muitas mais vezes do que seria desejável, as carreiras. Empresários, pais, nalguns casos as duas coisas, que na ânsia de lhes aproveitarem o talento, muitas vezes com interesses manifestamente mais financeiros do que desportivos, acabam por prejudicar, de forma irreversível, a progressão dos filhos ou dos representados. Encontrei, nos mais de 20 anos que já levo de jornalismo desportivo, centenas de casos assim. Miúdos a quem se apontava um futuro brilhante e que, por sofreguidão, desapareceram do meio futebolístico quase sem deixar rasto. Podem ter ganho (eles e quem os representa) algum dinheiro, talvez até muito dinheiro, mas desportivamente não foram (muitos nem andaram lá perto) aquilo que poderiam ter sido. Porque o caminho mais rápido para o melhor contrato não é, quase nunca, o melhor caminho em termos de carreira. E, em muitos casos, é uma pena.
Há, depois, o outro lado da questão, que Jorge Jesus não abordou, por falta de tempo ou por falta de interesse pelo tema. Sendo verdade que precisam, os miúdos que estão a aparecer e sonham em jogar nas equipas principais de Benfica, Sporting ou FC Porto, de paciência, de esperar pela sua oportunidade, não pode, o treinador, deixá-los eternamente à espera. Tem de lhes mostrar que serão, de facto, uma aposta. Que o seu momento chegará. E isso não se faz, lamento, chamando-os de vez em quando aos treinos do plantel principal. Ou metendo-os uns minutos num qualquer jogo da Taça de Portugal contra adversários de segundo ou terceiro escalão e esquecendo-se deles nos jogos a sério, deixando-os fora da convocatória, na bancada ou sentados no banco mesmo quando as coisas estão resolvidas e metendo em campo jogadores batidos que parecem, por isso, ter o direito de jogar sempre, nem que seja para picar o ponto. Nada disso. É preciso mostrar-lhes que se conta com eles a sério. Pedir-lhes paciência e não lhes dar uma oportunidade é, apenas, mostrar-lhes que, efetivamente, não contam para nada. E aí, convenhamos, não podemos condená-los por partirem à procura de quem lhes dê uma real oportunidade de evoluir. Como Bernardo Silva ou João Cancelo no Benfica, Matheus Pereira ou Domingos Duarte no Sporting, Vítor Ferreira ou Fábio Silva no FC Porto, só para citar alguns exemplos de jogadores de quem os três grandes portugueses podiam, e deviam, ter tirado mais rendimento desportivo e, se calhar, financeiro...

N O fundo, a palavra que resume tudo quando se fala a sério de formação é equilíbrio. Dos clubes, dos treinadores, dos jogadores, dos pais, dos empresários e dos adeptos. O problema é que em Portugal equilíbrio é coisa difícil de se encontrar no futebol. Como em tudo, cada parte  olha apenas para os seus próprios interesses, procurando sempre o caminho mais rápido para conseguir resultados, sejam eles desportivos ou financeiros. E a formação de um jovem jogador não se coaduna com imediatismos. De qualquer espécie