Um homem só!

OPINIÃO31.01.202003:00

É incontornável, esta semana, deixar o assunto FC Porto bem em cima da mesa. E é incontornável por muito que o FC Porto queira dar a ideia que o assunto morreu. E é incontornável, também, por não haver memória - eu, pelo menos, não a tenho - de um treinador do FC Porto ter dito o que disse o treinador do FC Porto, Sérgio Conceição, logo após a derrota portista na final da Taça da Liga, com o Braga, no último sábado. Sublinhe-se: o que Sérgio Conceição disse nunca um treinador do FC Porto tinha dito. Talvez pior do que isso, só mesmo não ter sido uma surpresa.
O que Sérgio Conceição disse foi apenas o que há muito corria nos bastidores sem que alguém o dissesse. Na verdade, não era preciso ouvi-lo para suspeitarmos todos que algo não ia bem no reino do dragão. Bastava ver os sinais, as reações de alguns adeptos, ouvir o que ia sendo dito, aqui e ali, nos comentários televisivos, de gente portista, ou no que se ia sendo escrito nas redes sociais, para se perceber a instabilidade, e, nalguns casos, até alguma animosidade com o treinador portista, em particular, mas também com alguns dos outros responsáveis do clube, em geral.
Dir-se-á que em condições normais, se Sérgio Conceição tivesse dito o que disse já não seria o treinador portista no dia seguinte.
Direi eu que nessas ditas condições normais, Sérgio Conceição nunca teria tido necessidade de dizer o que disse.
Sérgio Conceição disse o que disse porque as circunstâncias internas no FC Porto estão longe de ser normais.
Sérgio Conceição disse o que disse porque sabe muito bem quais são as circunstâncias, porque concluiu que, ao contrário do que alguns possam pensar, só dizendo o que disse é que pode defender o FC Porto e atingir o que quer, e porque tinha a certeza absoluta que o presidente jamais lhe tiraria o tapete na circunstância em que o FC Porto está.
Terá, naturalmente, Sérgio Conceição responsabilidades no atraso do FC Porto para a liderança benfiquista da Liga.
A questão é que o maior problema do FC Porto está longe de ser o atraso de sete pontos para o Benfica.
O maior problema do FC Porto deixou de ser conjuntural.
Já é estrutural.
E tendo sido Sérgio Conceição o responsável pelo milagre do título de campeão em 2018, não é certamente ele o culpado de o FC Porto ter ganho apenas esse título nos últimos seis anos.
E não é ele o culpado pela intervenção da UEFA no clube devido ao fair play financeiro negativo.
E não é ele o responsável pela grave situação financeira - passivo nos 400 milhões - ou pelo gasto de quase metade dos 400 milhões de euros do contrato de dez anos de direitos televisivos do FC Porto com a MEO.
E não é Sérgio Conceição o responsável do FC Porto ter tido sete treinadores nos últimos sete anos.
E por ter vendido, por valores inferiores ao esperado, jogadores como Rúben Neves, Diogo Dalot ou Gonçalo Paciência (consta que, neste caso, Sérgio Conceição só ficou a saber que o perdia quando o jogador lhe bateu à porta para se despedir, ainda no estágio de pré-temporada no Algarve)!
Mais: não é seguramente de Sérgio Conceição a culpa de o FC Porto ter deixado sair do clube a custo zero jogadores como Herrera ou Brahimi, de correr o risco de perder da mesma maneira Alex Telles - que termina contrato já no final desta época -, ou até mesmo Marega ou Tiquinho Soares - os dois últimos ainda com época e meia mais de contrato.
E não é Sérgio Conceição o responsável pela promessa  de anos de um centro de formação do FC Porto que ainda ninguém viu.
E não é certamente dele a culpa de os dirigentes da SAD receberem de salário os altos salários que se diz que recebem - com alegados aumentos substanciais (fala-se em 150 por cento), mesmo na última época, quando o FC Porto perdeu o título para o Benfica, depois de ter tido sete pontos de vantagem à entrada para a segunda volta, nesse caso, sim, com alguma óbvia responsabilidade também do treinador, no que diz respeito apenas à condução desportiva da equipa.
SERÁ de Sérgio Conceição a culpa de o FC Porto ter deixado partir Ivan Marcano a custo zero e, um ano depois, ter ido buscá-lo por três milhões de euros, dar-lhe um salário naturalmente luxuoso e, ainda por cima, a braçadeira de capitão?
Será também de Sérgio Conceição a responsabilidade de ninguém perceber muito bem o que aconteceu aos cerca de 600 milhões de euros que o FC Porto parece ter feito nos últimos dez anos com a venda de craques como Hulk, Falcao, James Rodriguez, Jackson Martínez, Alex Sandro, Danilo, ao ponto de se ver intervencionado, como se sabe, pela UEFA?
Claro que Sérgio Conceição terá as suas responsabilidades na época que o FC Porto vem realizando. É ele o treinador principal, é ele, ainda por cima, o único líder que dá verdadeiramente a cara pelo FC Porto, são dele as opções desportivas em cada jogo.
Mas o problema do FC Porto deve ser visto no seu todo e não apenas numa das partes.
Porque hoje, cada vez mais, não chega fazer uma boa equipa, contratar alguns bons jogadores, ter a alma de Sérgio Conceição e autêntico espírito de combate para se conquistarem títulos.
É realmente preciso que o clube respire união porque só a união o levará a fazer das fraquezas força.
E só a união produz estabilidade.
Ao falar da falta dela, Sérgio Conceição tocou na ferida. Na maior das feridas que atualmente atingirão o FC Porto
A falta de união significa instabilidade.
E a instabilidade provoca fraturas.
E as fraturas, quando se acumulam, são cada vez mais difíceis de resolver.
E, sendo cada vez mais difíceis de resolver, abrem mais feridas.
E as feridas, depois, são muito difíceis de sarar.
Podem os adeptos do FC Porto ter tido muita dificuldade para digerir a eliminação da Liga dos Campeões aos pés do modestíssimo Krasnodar. OK!
Lembro, porém, que até o grande FC Porto do grande Artur Jorge sofreu uma vez o percalço, na Taça das Taças de 84/85, de se ver eliminado, também em casa, pelo ultramodestíssimo Wrexham, do País de Gales, que jogava então na quarta divisão do futebol inglês, e não foi por isso que o edifício portista se deixou abalar profundamente e não foi isso que impediu o FC Porto do mesmo grande Artur Jorge de se tornar campeão europeu apenas dois anos depois.
Admito ainda que alguns adeptos do FC Porto , sobretudo aqueles que vimos, em abril de 2019, contestarem de forma absolutamente grosseira o treinador e os jogadores após um empate em Vila do Conde, ou, já esta época, quando a equipa perdeu em Barcelos na 1.ª jornada e, dias depois, foi eliminada pelo Krasnodar no Estádio do Dragão, não consigam reconhecer (e muito menos compreender) a coragem e o caráter de um homem (Sérgio Conceição) que mesmo sendo treinador do FC Porto, tendo a cultura e todo o ADN do FC Porto - clube que defendeu e ganhou como jogador desde muito cedo -, amando, como ele diz, o FC Porto, assumindo, por vezes, um comportamento demasiado agressivo e até  mesmo, tantas outras vezes, meio descontrolado em nome de uma certa defesa do FC Porto, e exagerando, por isso, muitas das reações que tem... à Porto, é o mesmo homem que sempre respeitou, como pai, que um dos filhos quisesse continuar (como continua) a jogar no Benfica.
Escrevi-o aqui e volto a escrevê-lo: não é para todos!
Talvez devesse, provavelmente,  o FC Porto orgulhar-se - e defender - o treinador que tem, até pela dificuldade que terá sempre em encontrar outro treinador com o perfil de Sérgio Conceição, em vez de deixar que lhe façam a cama a partir da força externa de uma claque que nunca deixou de ser verdadeiramente o braço armado da estrutura dominante do clube.
Escusado, porém, questionar quem é o grande responsável por tudo o que tem acontecido e por tudo o que está a acontecer no clube, apesar de todas as boas intenções com que decidiu comparar Sérgio Conceição a José Maria Pedroto.
Esse responsável tem obviamente um rosto: é o presidente do FC Porto e mantém o clube na pior das situações - a de ser ele, o presidente, ainda o líder incontestado e incontestável, mas talvez já sem um quinto da força e do poder de outros tempos, logo mais vulnerável e, de algum modo, até cúmplice do saco de gatos em que acaba por cair - e dividir-se... - o poder sempre que o habitual poder de um homem só se dilui pela inevitável erosão da própria vida.  
Quem sabe se não é exatamente por isso que Sérgio Conceição me parece no FC Porto, realmente, um homem cada vez mais só!