Um deus no estádio
1 A 29 metros de distância, Leo Messi bateu o livre em arco com o seu mágico pé esquerdo. A bola sobrevoou a barreira dos calmeirões do Liverpool, curvou sobre eles numa elipse perfeita e foi para onde toda a gente já sabia que ela ia, incluindo o guarda-redes Allison. Mas nem assim ele pôde evitar o inevitável: chegar àquela bola que, teleguiada por um GPS invisível, se foi aninhar exactamente no ponto onde a barra encontra o poste, com a força e a colocação perfeitas. Creio que foi o mais bonito golo de livre que já me foi dado ver. E foi o golo número 601 de Messi, apenas menos um que Ronaldo, mas em menos uma centena de jogos. E assim se culminou mais uma exibição de sonho do pequeno porteño, que, saído da Argentina ainda criança, foi encontrar o seu destino incomparável ao serviço do clube símbolo da Catalunha: há um Barcelona antes e depois de Messi, assim como há um futebol antes e depois de Messi.
Em Portugal, fica mal, há uma espécie de censura implícita, de sub-reptícia insinuação de falta de patriotismo, se um português amante de futebol se atreve a dizer que Messi é melhor do que Ronaldo. Paciência, eu sempre o pensei e sempre o disse, embora também ache que Cristiano é talvez o melhor atleta que o futebol já viu - como o demonstrou o inesquecível golo marcado à Juventus no ano passado. Mas Leo Messi é outra coisa: não dispondo dos atributos físicos de Ronaldo, não tendo sequer estatura para marcar golos de cabeça, ele estabelece a diferença por tudo o resto: um poder de drible incomparável, uma capacidade de remate que é uma simbiose perfeita entre técnica e inteligência (nunca remata à baliza só para tentar a sorte ou se há um companheiro melhor colocado para receber um passe seu e o fazer) e, como ninguém, uma estonteante visão de jogo e capacidade de passe, seja curto ou longo, que lhe permite do nada construir uma jogada de golo para a sua equipa - como se viu contra o Liverpool, em que marcou dois golos e ofereceu três, desperdiçados por Suárez e Dembélé. Azar o de Ronaldo ser contemporâneo de Messi, azar o de Messi não ser alto e fotogénico, seja de cara ou de abdominais. Mas hoje, que não tenho dúvidas de que Messi é o melhor jogador que alguma vez vi jogar, também não tenho grandes dúvidas em afirmar que jamais existirá alguém que se lhe compare. Porque eu vi jogar Cruyff e Maradona (os mais próximos dele) e ainda vi jogar Péle e Eusébio, também dois extraordinários atletas e jogadores, mas nenhum deles, nem mesmo Cruyff, conseguiu atingir a sua dimensão sobrenatural - e época após época, já lá vão treze anos. Na verdade, penso que só para evitar a monotonia é que Messi não ganha todos os anos a Bola de Ouro, correspondente ao melhor jogador do mundo em cada época. Porque durante todos estes treze anos ele foi sempre o melhor e continuará a sê-lo enquanto pisar os relvados.
2 É preciso ter todo o descaramento do mundo para fazer um comunicado a criticar o comportamento das claques do FC Porto, como o Benfica o fez há dias. Já o escrevi a semana passada que me custava engolir a preponderância que os Super Dragões têm no meu clube e a sua atitude de donos do clube. E posso acrescentar esta semana que o preito de vassalagem a que jogadores e treinador portista foram obrigados após o jogo com o Aves foi humilhante para eles e desprestigiante para o clube. Porém, esses incidentes foram, como disse Sérgio Conceição, «desavenças familiares», passaram-se entre muros e a ninguém mais se dirigiram que aos próprios atletas do clube: as nossas claques não matam nem invadem autocarros de equipas rivais à porta do nosso estádio para agredir os atletas que estão lá dentro indefesos. E, ao contrário da claque deles, a nossa está legalizada, sabe-se quem responde por ela e quem deve ser responsabilizado em caso de incidentes. Mas a deles, não, porque o seu presidente decretou que ela oficialmente não existe, não passando de «um grupo organizado de adeptos» e, assim sendo, quer a claque quer o clube mantêm-se ostensivamente à margem da lei porque a «Instituição» (como gostam de se referir ao clube), acha que nem todas as leis da República lhe são aplicáveis, mas só aquelas a que eles entendem conformar-se.
É aliás extraordinário a este respeito, que o Benfica tenha já acumulados uns cinco jogos de suspensão do seu estádio à conta do comportamento das claques ilegais, e que todos esses jogos de suspensão decretados pelo Conselho de Disciplina, estejam suspensos pelo Conselho de Justiça, na sequência da aceitação de outras tantas providências cautelares interpostas pelo Benfica. Creio até que há mais de um ano já que o Benfica acumula assim suspensões suspensas, sem que o CJ tenha entendido que a decisão definitiva tenha pressa, prazo ou conveniência. É um veto de bolso que, sem dúvida, prestigia a justiça desportiva, tornada conivente de um clube que ostensivamente se recusa a cumprir uma lei do Estado, a qual visa diminuir os riscos daquilo que à boca cheia todos proclamam pretender: combater a violência associada às claques no futebol. Imagino o que não seria o escândalo se fosse outro clube a desafiar assim a lei que todos os outros cumprem!
3 Por esta e por muitas outras atitudes bem mais graves, ou pela suspeita da sua ocorrência - cujo esclarecimento também as autoridades estão há tempos infindos para concluir, aparentemente à espera do esquecimento ou da conveniente prescrição - é que este Benfica actual acumulou uma fama que não prestigia o Benfica de todos os tempos. Como se sabe, foi exactamente para tentar suster esses danos de reputação e intimidar quem forneça informações que os fundamentam, que o Benfica SAD interpõe contra o FC Porto SAD uma acção de indemnização por danos morais que corre os seus termos no tribunal. Está, obviamente no seu direito. Mas não deixa de ser revelador que os danos reputacionais invocados pelo Benfica resultem, segundo o clube queixoso, não dos actos por ele praticados ou pela suspeita de os haver praticado, mas sim por os mesmos terem sido revelados por outrem. Outra vez a «Instituição» acima de tudo e de todos.
4 E o campeonato está perdido, claro. Considerei-o perdido com a derrota no Dragão frente ao Benfica, pois a ordem natural das coisas assim o fazia prever. E se bem que não tenha sido exactamente ou apenas a ordem natural das coisas a manter o Benfica com os dois pontos de vantagem sobre o Porto com que saiu desse jogo, agora só quem acredita em milagres é que ainda pode acalentar alguma esperança. E até vemos o FC Porto na situação impensável então de ter de ir ao menos empatar com o Nacional (num terreno terrível e contra quem joga a permanência), sob pena de poder até perder o segundo lugar na última jornada, quando enfrentará em casa um Sporting em notável recuperação e sem nada a perder. As voltas que as coisas dão.
5 Multiplicam-se as notícias da cobiça do Atlético de Madrid sobre alguns jogadores portistas: Herrera, que já terá assinado e sairá a custo zero, Felipe, cujas negociações já estarão avançadas e pelo preço de metade da cláusula de rescisão, e Alex Telles, em relação ao qual o Atlético tenta também um saldo de ocasião. Faço minhas as palavras aqui escrita pelo portista Paulo Teixeira Pinto: com o Atlético de Madrid, nada. Eles e o SC Braga, noutro patamar, são os clubes com quem Pinto da Costa tem feito os piores negócios para o FC Porto, comprando caro e vendendo barato, comprando fiascos e vendendo craques. Se acontecer que o Atlético de Madrid - que, pelos vistos, não sabe procurar jogadores - se limitará a usar a sua superior capacidade financeira para nos levar por uns trocos aqueles que nós descobrimos e elevámos ao nível de top europeu, será um final de época já garantidamente estragado.