Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo o propósito debaixo de céu
Lembrei-me destes versículos do Livro do Eclesiastes no momento em que empreendo a dura tarefa que é escrever esta crónica. Ontem vivemos o dia mais negro da história do Sporting. O que vimos, foi algo que julgaríamos ser impossível, por maior que fosse a banda larga retirável da previsão do Livro Sagrado. Já muito se disse e comentou sobre o escabroso episódio. Os significados vão muito para além dos pobres significantes mas é com as palavras que temos de comunicar a perplexidade que nos tomou. Insólito, criminoso, abjeto, repugnante, automático, incompreensível. Tudo foi dito e redito. Os adjetivos faltam insuficientes que são para que exprimamos o que nos vai na alma. Não vou reincidir na penosa autópsia do tema. A justiça fará a sua parte, por um lado e, por outro, todos nós retiraremos as nossas ilações sobre aquilo que, intragável e amargo como nunca fora, nos foi servido pelas notícias. Mas quando ainda estávamos apanhados no remoinho feito das dolorosas réplicas do terramoto e com uma espécie de midríase coletiva provocada pelo que vimos, eis que surge mais uma aflição, batizada de Operação Cashball.
O site da Procuradoria da Comarca do Porto informa, laconicamente, que se trata de uma investigação em curso, relativa a suspeitas da prática indiciada de crimes de corrupção ativa e passiva no fenómeno desportivo. É caso para dizer que uma desgraça nunca vem só. Os dois eventos têm, notemo-lo, naturezas bem diferentes. A invasão à Academia e a emboscada aos nossos jogadores e às equipas técnica e médica, foram profusamente espalhadas, em imagens degradantes, que nos envergonharam a todos, emitidas quase em tempo real. Ao invés, dos factos em investigação sabemos pouco. Desconhecemos se algo de errado foi feito, quem o haja feito, em que circunstâncias e com que cumplicidades. Cumpre-nos aguardar, tão serenamente quanto possível, ancorados na presunção de inocência e, mais do que na presunção constitucional imperativa, na esperança de inocência efetiva. Mas uma coisa é certa: estamos ensanduichados entre dias de pesadelo e receios de perdas pesadas que o nosso Sporting pode vir a sofrer, as quais, obviamente, tememos com razão. Atravessamos um momento absolutamente critico.
Mas eis que, entre a tormenta vigente, temos agendada a que se usa chamar como a festa do futebol. A festa do futebol vejam bem! A expressão tem o sabor a piada ácida mais própria de um qualquer tipo de humor negro. Em circunstâncias normais estaríamos preparando esse dia com todos aqueles ingredientes que fazem a dita festa ser isso mesmo, uma festa. A romaria ao Jamor seria o epílogo de uma época positiva, conquanto não tivesse sido perfeita. Positiva se ganhássemos claro, porque o Desportivo das Aves também se baterá pelo troféu. Quem não se lembra do que aconteceu com a Académica? Todavia, no momento bem mais histérico do que histórico que atravessamos, as dúvidas são mais radicais do que a simples especulação sobre os onzes, ou os prognósticos sobre o resultado. Estamos noutro patamar: haverá jogo? Teremos jogadores? Em que estado físico e psicológico se encontrarão após o vendaval de agressão e de humilhação que os vitimou? Nunca a final de uma competição terá sido preparada de forma tão atípica e dolorosa.
Ouvi o Presidente da Assembleia da República, Dr. Ferro Rodrigues, conhecido sportinguista, sugerir (pelo menos isso não o chocaria) que o jogo se realizasse à porta fechada, ou, em alternativa, fosse deslocalizado para a Vila das Aves. Ouço dizer, também, que está em aberto a possibilidade de o jogo ser adiado. Respeito muito e bem compreendo todas as opiniões emitidas sobre o tema. Mais a mais quando ainda todos estamos em puro estado de choque. Percebo a necessidade de dar um sinal exterior de repúdio provindo dos mais altos responsáveis políticos. Na dimensão mais interna nossa terei sempre de aceitar a atitude a que vier a ser assumida pelos jogadores do Sporting. Foram humilhados e ofendidos, não à maneira de Dostoiévski, é certo, mas ainda assim desprotegidos por quem tinha a obrigação de os proteger. Ao cair do dia, porém, veio um sinal de esperança. Os jogadores estarão mesmo dispostos a jogar. Li o comunicado e percebi-o nas suas linhas e entrelinhas. Se assim for, irão ao encontro do desejo dos milhões de Sportinguistas que os quererão ver jogar, como os quererão apoiar, de forma incondicional, nesta derradeira jornada futebolística.
Já tive ocasião de referir que, fazendo-o, todos eles se tornarão heróis do Sporting e ficarão gravados a letras de oiro na nossa história, a par com as equipas técnica e médica. Todos merecem jogar e todos merecem ganhar; nós, os adeptos, merecemos que eles joguem e merecemos que eles ganhem. Todavia, mais do que nunca, estaremos com eles na prosperidade como na provação, tal qual como se determina no ritual dos matrimónios. Atravessamos tempos muito difíceis. Desenha-se, aqui e ali, um cenário próximo do apocalipse. Os próximos dias poderão trazer mais sol ou mais tempestade. Mas há este objetivo último, que não deveríamos deixar escapar. Falo no pressuposto de que o jogo se realize como é óbvio. Acrescento como seria lamentável se não fosse assim. Significaria que a liberdade, a normalidade e o estado de direito, teriam vergado perante a patologia reinante. Ora o que se exige do estado de direito é que garanta a fruição, em paz, dos direitos dos cidadãos. Acredito que isso será passível de ser garantido. Este é o nosso objetivo de curto prazo, para fechar bem uma época que ficará célebre pelas piores razões. A vitória na Taça não evitará todos os problemas dos dias seguintes. Mas será como um raio de sol na água fria, com a devida vénia a Françoise Sagan, a quem peço emprestada a expressão. Para o dia seguinte está gerado pelo menos um consenso alargado e que consiste em considerar que os órgãos sociais devem demitir-se. Veremos até que ponto este consenso gerará uma atitude conforme. Anunciam-se reuniões dessas entidades para os próximos dias. O Universo leonino, todos nós, ficaremos à espera de algo que faça cessar esta penosa agonia. Nestas alturas os órgãos e as pessoas individuais que os compõem têm a palavra. Esperemos que seja acompanhada pelo necessário sentido de estado, tão necessário para começar a corrigir, com a urgência devida, o estado a que isto chegou. E que viva o Sporting.