Tempo de riscos, desafios e fantasias

OPINIÃO08.09.202004:00

1 Há dias, deu-me para passar umas horas do serão a fazer zapping sobre todos os programas televisivos que falavam de futebol. Uma série de canais, desde os dedicados ao desporto até aos noticiosos generalistas agora quase especializados em futebol. O que pude ver foi um fartote de comentários, previsões, transferências, enredos, hipóteses em cascata de novas aquisições, dispensas, fake news, zangas e tudo o mais, obviamente em registos bem diferentes, desde programas maduros e sensatos a folhetins televisivos ensaiados, repetidos, fantasiados e frenéticos. Quase todo o tempo só dava ‘notícias’ à volta do Benfica! É claro que até percebo (e, em tese, «isso me envaidece») doses tão alargadas de Benfica, pois que as audiências estão mais garantidas a fazer fé nos 6 milhões de adeptos e simpatizantes, mais do que a soma de todos os outros clubes. Acontece que também tem o lado contrário, pois que o clube é discutido pelo que faz, pelo que se quer que faça (ou não faça) e pelo que não faz, mas que alguns opinadores querem que se imagine que se faça para ver o que se seria se não se fizesse. Uma mixórdia sem fim.

Tanto caudal noticioso ou opinativo, certo ou errado, atrasado ou adiantado, seguro ou especulativo, precisa de ser alimentado ou pelo menos ‘soprado’. E isto preocupa-me. As transferências de jogadores para o Benfica, acertadas ou abortadas, são quase relatadas em tempo real. Se o segredo (e no futebol reforçadamente) é a alma do negócio, no Benfica tudo se sabe, tudo se fantasia, tudo se relaciona, tudo se especula. Lá está - outra vez -, quem garante audiências é o Benfica e o resto são cantigas. Não faço ideia das ‘fontes privilegiadas’, se dentro ou fora do clube, se no seio dos virtuosos empresários, agentes e intermediários e toda a corte subjacente, se de amigos ou inimigos, se de estruturas laterais ou verticais. O certo é que tudo se sabe ou faz crer que se sabe e isso não prestigia um grande clube como é o SLB, e até pode o prejudicar negocial e reputacionalmente.

2 Outro vendaval - aliás, generalizado - é o do redemoinho do custo dos passes, das transacções cruzadas, de se falar sempre do salário que jogadores ganhavam ou vão ganhar, com esse preciosismo tecnocrático de salário bruto e salário líquido, diferenciação quase obscena para pessoas que vivem com baixos salários, onde só se fala da remuneração bruta. Uma festa que, pelo mundo inteiro e obviamente também no nosso cantinho, se tornou banal, falando-se de milhões para cá ou para lá como se fosse uma coisa banal, até esquecendo-se que ‘no fim do dia’ quem paga somos nós, ainda que por vias mais directas ou travessas.

A coerência de análise está quase sempre inquinada pelos fervores clubísticos, quando se fala do ‘preço’ de jogadores. Tem-se dito e redito que Darwin Núñez custou uma loucura (todavia, a pagar em 5 anos), tendo ele vindo da segunda divisão espanhola e só marcado uma vintena de golos (o rapaz tem 21 anos…). Curiosamente, o cobiçado goleador Carlos Vinícius também veio do Nápoles que o contratou ao Real Massamá. Mas, voltando a Darwin, vejo gente a dissertar incrédula sobre o custo e incomodada não vá o jogador sair um craque com retorno desportivo e financeiro elevado. Tudo bem, são, de facto, montantes inusuais e, na minha opinião, arriscados onde nem sempre o que parece acaba por ser. Mas tanta estupefacção neste caso, já não existirá para outros não muito diferentes? Por exemplo, para Fábio Silva de 18 anos, que só jogou na última época uns ‘pinguinhos’ de tempo quando o resultado estava seguro e marcou ao que julgo 3 golos, os 40 milhões que o Wolves (clube que não luta por títulos em Inglaterra e está fora das competições europeias) vai dar por ele já são justificadíssimos e isentos de risco? Bem sei que o mercado inglês não é o nosso, bem sei que há magnatas a financiar e branquear operações, mas Fábio Silva custar mais 60% do que Darwin já é aceitável? Um parêntesis para dizer que o FCP fez um magnífico negócio, não só quanto ao valor monetário, como quanto ao sigilo da operação que, como é notório, o SLB é infelizmente incapaz de assegurar. Mas há mais: Trincão, que acho que vai ser um enorme atleta, não foi comprado pelo Barça por 31 milhões em Janeiro, quando só tinha 20 jogos incompletos na primeira divisão? E o japonês Nakajima, numas semanas ‘sem perdão’, noutras semanas ‘perdoado’, não custou 12,5 milhões por metade do passe? …

Volto a dizer que não nego que a operação Darwin é de risco relativamente elevado para o cenário do futebol português e em plena crise pandémica e económica. Só o futuro o dirá, mas confio na certificação sabedora de Rui Costa.

3 O defeso - este bem longo - é matéria-prima para todos os sonhos e devaneios. Títulos, entrevistas, chegadas, conferências, frases, vídeos falaciosamente selectivos para superlativizar qualquer golo passado ou um providencial corte na defesa. Todos craques, todos estrelas feitas ou a despontar. Agora é que é: o homem vai explodir na nova equipa. O diamante por lapidar tem finalmente oportunidade de mostrar o que (ainda não) vale. Abram alas, o antes tosco vai despontar. Veio para ser campeão. Voltou ao radar dos grandes. De corpo e alma (e suponho carteira) no novo clube. Talento para dar e vender. Tem uma forte mentalidade. Com a família perto vai ser uma maravilha. Sou (do clube) desde pequenino, e agora essa delícia de o novo portista Zaidu ter declarado solenemente que já era dragão na Nigéria. Genial, fabuloso, imprevisível, inteligente, líder, prodigioso, são alguns dos muitos adjectivos para se colarem ao recrutamento. Mais tarde - retirando uma minoria bem confirmada - é o tempo da decepção, do desapontamento, do não me habituei ao país, do não fui ajudado, do percebi que o treinador não contava comigo e outras considerações que anulam a fantasia. Cada vez estou mais ‘São Tomé’ no futebol: ver para confirmar ou infirmar. A não ser que seja um Messi ou um Ronaldo.

4 A compra e venda de passes de jogadores tem quase sempre implicado custos de intermediação, vulgo comissões e outros custos de aquisição, vulgo assinaturas e luvas. Dá-se até o caso de o comissionista ser directa ou indirectamente o atleta ou a família. Percebo que o jogador tenha uma assessoria de carreira, nas suas diversas e por vezes complexas facetas. E compreendo que tal serviço deva ser bem remunerado. O que já não percebo é que nas transacções efectuadas haja comissão pela compra e comissão pela venda. É de uma irracionalidade mercantil só comparável aos juros negativos. Tanto quanto li, na transferência de Darwin lá surgiu no último momento a gula comissionista em termos nebulosos, até com pessoas que julgava definitivamente arredadas do universo benfiquista. Tem lógica pagar a intermediação do serviço a uma entidade que ajuda o clube vendedor a colocar um atleta. Mas é de todo descabida a comissão pela compra de um jogador. Ou seja, no fim de uma operação pode haver dois fees (uso a palavra inglesa para tornar mais modernaço o estipêndio): do lado do clube vendedor um custo da venda, do outro lado, um custo da compra, só não se sabendo que relação disfarçada pode haver entre todos e se há quem, no fim, pague total ou parcialmente os dois encargos…