Televisão, fealdade e música
Televisão
1 - Francis Bacon, um dos pintores mais importantes do século XX, são dele alguns dos quadros mais caros da história da pintura. Rostos e retratos meio fumados, distorcidos, nunca belos. Uma vez disse: «Nada do que eu pinto poderá ser mais feio que o que se vê na televisão»
Esta semana vimos episódios terrivelmente feios na televisão; uma semana quase normal, portanto.
Porém, de facto, ver episódios de racismo em directo, via tv, não será único, mas não é comum.
O feio
2 - Um zoom sobre o feio não tira a fealdade à coisa. Colocar o feio em câmara lenta ou em loop interminável não tira fealdade à coisa.
«Nada do que eu pinto poderá ser mais feio que o que se vê na televisão». Francis Bacon tinha muita razão.
Os debates
3 - A fala nem sempre é argumento, nem sempre é linguagem e raciocínio. Muitas vezes na televisão a fala é pura ocupação de espaço e tempo. Como um bicho que quer assegurar metro quadrado, muitas vezes, ali estão humanos na guerra da ocupação do território do tempo.
Não se trata de discutir, de argumentar, de ouvir o argumento do outro e responder com contra-argumento; trata-se de produzir som como uma máquina feita para mostrar que está viva, que não se rendeu, que continua a lutar. O silêncio, um dos maiores sinais de inteligência - significa que se está escutar o outro ou a pensar - é visto, nestes contextos, como desistência ou um assumir da derrota. Estás calado, portanto, perdeste. Substituição da decisão ao murro não pelo argumento que decide, mas por uma espécie de resistência da voz. A linguagem deixa de ser argumento e passa a ser voz. O importante não é o que se diz mas a projecção das cordas vocais. Muitos dos debates na televisão seriam claramente vencidos por um barítono poderoso.
E então, subitamente, humanos em redor de uma mesa deixam de falar e passam a emitir sons que se tornam quase disformes quando ditos ao mesmo tempo. Três ou quatro fontes de palavras a jorrar simultaneamente e cada vez mais alto fazem com que as palavras saiam do contexto da língua portuguesa e entrem numa outra língua qualquer, uma língua paralela, que lembra vagamente uma língua familiar mas que é agora um conjunto de puros sons breves, quase onomatopeias, um bá-bá-bá contra um tá-tá-tá e contra outro pá-pá-á-pá quase a recordar os sons da infância (infância: o mundo antes da palavra).
Talvez se pudesse colocar isto de forma mais clara e, antes de um debate, ficar atribuído a cada interlocutor uma sílaba. O senhor à minha direita fica com o tá-tá-tá; o senhor à minha esquerda fica com o bá-bá-bá, e etc. E quando o debate começasse os interlocutores entrariam logo, sem qualquer pausa ou disfarce, nos seus sons base, esquecendo as palavras. E, desta maneira, quem tiver mais projecção de voz e for mais resistente, vence. Uma vitória do tá-tá-tá sobre o pá-pá-pá não deixaria de ser vitória e, pelo menos, não se fingiria estar enquadrada num debate - palavra, esta, que envolve fala, escuta, argumento e contra-argumento.
A música
4 - E por vezes no meio dessa algazarra de sons lembro-me da frase atribuída a Victor Hugo, «a música é ruído que pensa». E é interessante imaginar a possibilidade de, quando a palavra se transformasse em ruído ininteligível, esta ser substituída, quase de modo automático, por música clássica, por exemplo.
Quando um debate abandonasse a serenidade e entrasse no ruído, de imediato, por iniciativa do moderador, se escutaria, por exemplo, a sinfonia n.º 40 em sol menor de Mozart. Entre ruído que já não é palavra e ruído que pensa, como é a música, deixemos a música ocupar o espaço que merece em muitos falsos debates. Ou palavra verdadeiramente, ou então… música.