Reduzidos a pó
TEM razão o presidente do Paços de Ferreira: tivessem sido Benfica, FC Porto ou Sporting os prejudicados pelo momento surreal de vermos funcionários de um estádio a espalharem cal viva nas linhas tal como aconteceu no Estádio de São Miguel, nos Açores, as mais altas instâncias teriam tomado algum tipo de decisão para, no mínimo, fazer com que este episódio não ficasse perdido no esquecimento. Tenho muitas dúvidas em qualificar aquelas cenas: se apenas ao nível do burlesco ou da vergonha. Infelizmente nunca poderá ser vergonha alheia, porque quem trabalha em jornais também faz parte do fenómeno, mais que não seja porque tem de noticiá-lo. O que se pode (e deve) dizer é que o rei vai nu. Porque situações assim resultam de falta de preparação, competência, conhecimento e infraestruturas num campeonato que quer ser (e diz ser) de primeiro mundo. A liga que tem clubes com estádios 5 estrelas da UEFA é a mesma na qual 11 dos 18 recintos apresentam uma média de espectadores abaixo dos 5 mil (já contando com, pelo menos a visita de um grande). À medida que o tempo passa o fosso da desigualdade vai-se cavando. Não condenem os pobres dos homens que iam atirando o pó branco como quem espalha sementes na horta: a grande culpa está a montante.
HÁ, na verdade, um campeonato a duas velocidades. O dos grandes, SC Braga, V. Guimarães, um cada vez mais sólido Rio Ave e, este ano, do outsider Famalicão; e depois o de todos os outros: o dos estádios vazios, dependentes dos apoiantes locais que só enchem as bancadas quando se decide uma subida, uma permanência ou uma presença europeia, porque no resto do ano é uma quase nulidade. Perceber os motivos desse divórcio deveria ser um imperativo de quem gere o futebol. A vida das pessoas mudou e hoje têm ofertas que não existiam há 20 anos: a nível social, cultural e comunicacional. Os espectadores de futebol do século XXI são hoje mais exigentes e precisam que um jogo lhes ofereça uma experiência que não seja apenas 90 minutos de desporto (quando o é), tal como acontece em todos os jogos da Ligue 1 em França ou na Bundesliga, por exemplo, onde há um claro cuidado de proporcionar uma experiência sensorial ao adepto pagante muito antes de o árbitro apitar para o início da partida. A cultura da bifana e do animador da feira é boa e genuína para o futebol distrital, não no futebol profissional, que há muito pede outros atores e, fundamentalmente, muito melhor preparados.
HÁ outro dado que ajuda a perceber o tipo de futebol que temos neste pedaço da Europa: a liga portuguesa é aquela que tem o maior saldo negativo entre faltas cometidas e remates por jogo, comparando com os cinco principais campeonatos (aqueles que temos o dever de tentar acompanhar). Em 19 jornadas já realizadas, a média de faltas é de 31 por encontro ao passo que a média de remates é de 21. Há mais 10 faltas que remates por cada partida da Liga NOS. Muito longe da realidade da Premier League onde acontece o inverso: 25 remates por jogo contra 21 faltas (vamos insistir para que não passe ao lado: em Inglaterra há mais remates que faltas). E não é o único país a apresentar saldo positivo - a Alemanha ainda é mais saudável: 28 remates por jogo contra 23 faltas. (Em França há uma proximidade dos números: 24 remates contra 26 faltas. (Espanha e Itália são os que mais se aproximam de Portugal: 23 remates/27 faltas; 21 remates/28 faltas, respetivamente). Não é por acaso que no final do jogo de estreia pelo Manchester United, Bruno Fernandes tenha apontado a intensidade como a maior diferença. Não a tática nem a técnica, mas o facto de se correr. E muito. Ainda sem saber bem o nome de todos os colegas o ex-capitão do Sporting e melhor jogador (ex-melhor jogador) da liga portuguesa ficou já a saber que não poderá cair na tentação de ficar no chão a protestar uma falta, como tantas vezes acontecia nestas bandas. Porque serão os próprios colegas a dizer-lhe «levanta-te e corre». Por ali a conversa é outra. Mesmo que seja na língua de Camões, tantos são os portugueses em campo (ou a prova de que eles são mesmo o melhor que o futebol luso tem).