Presença, ausência e paixão
1 Nesta fase de quarentena, passo grande parte do meu tempo lendo o que outros escreveram e escrevendo ou escrevinhando, mesmo que os outros não leiam. Afinal, e por ironia, eis quase uma síntese de três meios que me têm acompanhado ao longo da minha vida: a caneta, o livro e o relógio.
A caneta - agora substituída pelo teclado - continua a ter em mim o fascínio de me entregar directamente ao domicílio as letras, as palavras e os números que depois componho e descomponho. Costumo divertir-me com as canetas de tinta permanente, dando-lhes a tinta preta, azul escuro, azul vivo, sépia, roxo ou uma outra fascinante matiz, num acordo implícito entre o meu estado de espírito e o deleite do bico que a embebe. Nunca deixando de me interrogar sobre o paradoxo de se chamarem canetas de tinta permanente, quando, afinal, deveria ser o tinteiro e não a caneta que deveria ter como aposto nominal a permanência da tinta.
O livro, na companhia que me faz, ou melhor, os livros na junção que constituo em cada dia na adequação ao meu almómetro. O livro (não o virtual, mas o físico), que se tacteia como quem lhe pede namoro, com cheiro de novo, meia-idade ou velho, com espaço para sublinhar e perguntar ou referenciar, com memória para revisitar, e com tanto espaço para deixar a minha impressão digital. O livro, que me revela a supremacia da inspiração dos autores sobre a mera materialidade e que, se tivesse aparecido depois do computador, teria sido uma notável invenção. E porquê? Porque é permanentemente renovável dentro de nós, não consome energia poluidora, e tem um larguíssimo e facilmente atingível campo de visualização, que só de mim depende.
O relógio, que me impõe o tempo cronológico e me orienta no caos. O relógio, que me encurta o futuro e me enriquece o passado. Porque sem ele, a minha memória não tinha as referências de que preciso para associar o que fiz ou não fiz ao que ainda farei ou já não conseguirei fazer. Curiosamente, o relógio não nos mede o passado, e muito menos o futuro, porque apenas nos dá o presente que logo o deixa de ser no átimo em que o foi. Por tudo isto, sempre gostei, com espírito coleccionista, dos relógios de areia ou ampulhetas, que me oferecem essa magia do presente que é o grão de pó que passa entre a âmbula superior - o futuro - e a âmbula inferior - o passado. A ampulheta e a clepsidra (esta de água ou líquido) trabalham quando queremos e repousam quando as deixamos. Ao contrário do relógio, somos nós que lhes concedemos o tempo para elas nos darem o tempo.
2 Certamente o leitor perguntará (se, entretanto, ainda não tiver desistido) se estas palavras se adequam a uma crónica num jornal que é - mas não apenas - de carácter desportivo. Cada qual terá a sua resposta, mas, pela minha parte, acho que sim, sobretudo num período em que estão em jogo valores fundamentais da nossa essencialidade e não apenas aspectos de circunstância ou contingentes. Provavelmente, este período difícil irá aproximar a vida no alto futebol à realidade mais terrena das pessoas comuns e demonstrar que o realismo consistente não se compadece com um fosso entre um mundo de milhões e um mundo de tostões. O próximo mercado de transferências será o primeiro e claro sinal disso.
O próprio jornal A BOLA, nestes dias, tem sabido espelhar, com mestria e sensibilidade, esta ideia de que o desporto não é um mundo à parte e que, pelo contrário, se insere na sociedade em todas as vertentes que possamos considerar, sejam éticas, sociais, sanitárias, económicas, comportamentais, culturais. Basta atentar a impressivos títulos de algumas das últimas edições: Contas à vida ou O jogo das nossas vidas.
Sim, das nossas vidas num jogo traiçoeiro e difícil. Sem regras e regulamentos prévios. Com um calendário opaco. Mas com novos campeões nos escalões da deontologia, da ética, da prevenção, da solidariedade, do respeito pelo outro.
Tudo o resto virá depois. De um modo diferente. Com a lição registada e aprendida, espero.
3 Tenho lido, aqui e acolá, previsões, profecias, desejos mal dissimulados, manobras de pressão e de antecipação em torno da bola de cristal dos meses que se seguem à suspensão das provas desportivas. Percebo o vazio nas emoções que a ausência inédita de jogos desportivos provoca. Não há arbitragens como matéria-prima de análises, divergências e discussões. Não há VAR que nos valha para ficarmos intrigados com centímetros em versão somítica.
E, nos meses que virão, das duas, uma: ou haverá condições para se terminarem os campeonatos em tempo útil sem provocar danos na normalidade da próxima época, ou não haverá de todo. Se houver, devemos todos felicitarmo-nos. Primeiro, porque, no que mais nos interessa, é sinal de que haverá condições sanitárias para tal. Depois, porque, desportivamente, estarão garantidas as condições para classificações finais regulamentares e completas. Se não houver, não vale a pena forçar soluções mais ou menos (i)lógicas, enviesadas ou com mais ou menos clubite implícita. Como nada está previsto e regulado, qualquer saída é não só fabricada pós-acontecimentos, como aplicada com efeitos retroactivos, e sabemos, de antemão, que nenhuma terá um denominador comum de satisfação dos naturais interesses e posições dos clubes. Por exemplo, designar campeão um clube que está na frente quando há 30 pontos por disputar (29,4% do máximo teórico de 102 e 50% dos até agora 60 pontos conquistados pelo 1º classificado), a que acresce a mínima diferença entre os dois da frente (1 ponto) não tem consistência desportiva de nenhuma espécie. Tal como considerar a classificação ao fim da primeira volta, pese embora esta ser a única medida disponível em que todos jogaram contra todos. Ou, até na versão mais patética, qual seja a de considerar os dois jogos já disputados entre os rivais, como todos os outros clubes fossem verbos de encher.
Isto quanto a ser campeão da primeira divisão. E então quanto aos que descem? E aos que sobem? E aos que caem no Campeonato de Portugal (3.º escalão)? E aos que estão em melhores condições para passar para a 2.ª divisão? E os que desceriam aos distritais? E os que nestes se consideram próximos de ascender a uma competição nacional? E na segunda divisão dos distritais (aqui, lembro-me do Clube de Futebol Os Belenenses que está em condições de subir mais um degrau da longa escadaria que ainda tem pela frente)?
Mais complicado é o acesso à Europa, caso não haja mais competições domésticas em 2019/2020. A primeira palavra é a da própria UEFA, que pode impor uma regra única e universal em tempo de excepção. Ou encontrar uma forma de formatar o próximo ano das competições europeias, de modo a abarcar mais clubes, em termos de razoabilidade no seu acesso (por exemplo, em Portugal, considerar o SLB e o FCP na Champions). Se não houver regras de fora, este é o único ponto que terá de ser definido mesmo com uma época sem classificação final. Qualquer expediente administrativo desenhado à força é bem pior do que a decisão em jogos a efectuar para este fim. Por exemplo, os dois jogos entre Benfica e Porto (para atribuir o lugar de acesso imediato), até poderiam ser a final da Taça e a Supertaça que será obrigatoriamente entre os mesmos clubes. Uma boa oportunidade, também, para testar jogos com árbitros estrangeiros. Já quanto à Liga Europa, talvez uma poule entre os cinco putativos candidatos a um lugar nesta competição.
Em resumo, muita água vai correr por debaixo da ponte. Aguardemos, na esperança - essa sim, determinante - de conseguirmos vencer o vírus, afinal o inimigo invisível e traiçoeiro de todos os benfiquistas, portistas, sportinguistas, bracarenses, vimaranenses e de todos os clubes.
4 Como, por agora, tenho mais tempo mental para remexer em textos perdidos no tempo, quero partilhar com os leitores um saboroso excerto de um livro do romancista, humorista e cronista brasileiro Luís Veríssimo, agora com 83 anos (filho do grande escritor Érico Veríssimo), em que me revejo na minha inalienável condição de benfiquista: «Só o futebol permite que você sinta aos 60 anos exactamente o que sentia aos 6. Todas as outras paixões infantis ou ficam sérias ou desaparecem, mas não há uma maneira adulta de ser apaixonado por futebol. Adulto seria largar a paixão e deixar para trás essas criancices: a devoção a um clube e às suas cores como se fosse a nossa outra nação, o desconsolo ou a fúria assassina quando se perde, a exultação guerreira com a vitória. Você pode racionalizar a paixão, fazer teses sobre a bola, observações sociológicas sobre a massa ou poesia sobre o passe, mas é sempre fingimento. É só camuflagem. Dentro do mais teórico e distante analista e do mais engravatado cartola aproveitador existe uma criança pulando na arquibancada.»
Já septuagenário, confirmo gostosamente e sem pestanejar. «Carrega Benfica do meu coração!»