Podridão no futebol
Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol há dezasseis anos, continua a ser uma das vozes mais lúcidas e incómodas na classe dirigente, identificando malfeitorias e sugerindo medidas para as eliminar. Recomendo, por isso, a quem não teve oportunidade de o fazer, a leitura da entrevista publicada em A BOLA na sua edição impressa de anteontem, conduzida pelo jornalista Nuno Saraiva Santos, em que se percebe que os temas que preenchem a atenção de adeptos e jornalistas, tais como os penáltis avaliados ao milímetro, e que justificam páginas de jornais e horas gastas nas rádios e nas televisões com discussões ocas, apenas refletem o mal menor de uma atividade debilitada por feridas insaráveis que lhe são provocadas por gente de má índole, oportunista e hábil no aproveitamento das fraquezas da legislação.
Evangelista não podia ser mais claro. O futebol vive carregado de sombras: tráfico humano e lavagem de dinheiro; intervenção criminosa de angariadores e de clubes que aceitam sujeitar-se ao papel de barrigas de aluguer, deixando a Federação desarmada para intervir.
Em sua opinião, o Campeonato de Portugal é o esgoto do desporto e quase o esgoto da sociedade. A FPF quer acabar com esta selva de situações precárias, de controlo de investidores de duvidosa reputação, de contratos paralelos ou ausência do controlo de pagamentos, anuncia, mas há Associações distritais que nada veem e tudo ocultam. Ou seja, escolhem o lado errado.
Com uma coragem que vai rareando na nossa sociedade, o presidente do Sindicato dos Jogadores acusa máfias instaladas no futebol e alerta que «Portugal é uma porta de entrada, toda a gente sabe disso, da África a da América do Sul».
As mesmas máfias, agora mais aprimoradas, certamente, que estiveram na base de um trabalho de A BOLA, há meia dúzia de anos, assinado pelo jornalista Miguel Cardoso Pereira, e que, na sequência de preocupações de uma ONG com sede em França, deu conhecimento público do perigo de, a coberto do futebol, o nosso país servir exatamente dessa de porta de entrada na Europa a menores oriundos de África, com a colaboração de um clube do arredores de Lisboa, que funcionava como espécie de casa de acolhimento, mas não seria o único.
O curioso da história é que um conhecido empresário da nossa praça, sobre quem incidia uma suspeita de poder estar envolvido nesse vil negócio, mas do qual o SEF apenas tinha uma vaga ideia, continua, nos dias de hoje, a tratar da vidinha no mundo da bola como se nada fosse com ele.
asituação do Vitória de Setúbal foi abordada na entrevista e Joaquim Evangelista considera dramático o que está a acontecer. «Há anos que lá ia, dei a cara, sofri muitas ameaças, denunciei o que lá se passava (…) O melhor que o clube tem são os jogadores, os capitães que têm dado um exemplo de solidariedade e de responsabilidade», sublinha.
Sobre a sua exclusão da Liga portuguesa, recorda que, enquanto ele se preocupava, todos «assistiam de cadeirinha» a um desfecho que era inevitável.
Dou-lhe toda a razão, porque o colapso do emblema sadino não foi obra do acaso.
Em junho 2003, escrevi neste espaço, uma crónica com o título ‘Das Antas ao Bonfim’. Abordei a já precária realidade do Vitória, em que prevalecia o receio de «a promiscuidade entre a câmara de Setúbal [a de então], alguns construtores civis e o próprio clube» vir a dar que falar. Defendi que o presidente à data devia «esclarecer os protocolos, os negócios sobre o novo e o velho estádio, os adiantamentos por conta, as receitas e as despesas» e sugeri que o fizesse depressa, sob risco de «o Ministério Público se lembrar de ir ao Bonfim dar uma espreitadela»…
osenhor que mandava no clube sentiu-se ofendido e recorreu à justiça. O processo seguiu os seus trâmites nas diversas instâncias e foram ouvidos vários testemunhos, alguns muito relevantes e… esclarecedores. A litigação arrastou-se e só em julho de 2010 os tribunais colocaram ponto final no caso ao «não pronunciar o arguido [que era eu] pela prática do crime de que foi acusado nos autos» e ao libertar-me de qualquer indemnização civil, como também era pretendido.
Entretanto, dez anos passaram e, lentamente, o Vitória de Setúbal foi definhando, nunca lhe tendo faltado vendedores de falsas promessas, legitimados por assembleias gerais caracterizadas por muita emoção e pouco conhecimento, prova de que os sócios mal informados são a alavanca de que os enganadores se servem para assaltarem clubes e se aproveitarem deles para interesses que não raras vezes pecam por excesso de nebulosidade.
O que Joaquim Evangelista revelou não foi nada que não se suspeitasse. Por isso é que é ainda mais preocupante. Como a memória das pessoas é curta, o esquecimento é arma que os embusteiros esgrimem para se esconderem no futebol e prosperarem à custa dele. A única forma de os expulsar assenta na denúncia, pública e sistemática, porque o problema não está nos clubes, mas em quem os governa.