Parvoíces e autogolos
Hoje é o dia das petas, como dizia a minha avó. Era tão bom que fosse mentira este estuporado coronavírus. Se há uns tempos alguém em conversa nos dissesse que ia acontecer uma coisa capaz de parar o Mundo e imobilizar completamente as pessoas, a economia e a vida durante muito tempo, a resposta seria: «tem juízo!». Infelizmente, nem o Covid-19 é mentira nem os ministros holandeses das finanças deixam de dizer parvoíces em público - deve ser um vírus associado ao cargo. Há coisa de três anos o ministro Jeroen Dijsselbloem (também era presidente do Eurogrupo) foi entrevistado pelo jornal alemão Frankfurter Zeitung e disse o seguinte sobre os países do Sul da Europa (P-I-G-S): «Não se pode gastar todo o dinheiro em copos e mulheres e depois pedir ajuda.» É claro que os sulistas - Portugal, Itália, Grécia e Espanha - não acharam graça nenhuma à piadola e até houve um primeiro-ministro que pediu publicamente a demissão de Dijsselbloem nestes termos: «O presidente do Eurogrupo não tem a menor condição para continuar no cargo.» Chamava-se António Costa.
Três anos depois, Costa volta a meter um ministro holandês das Finanças na ordem em termos ainda mais duros. Realmente, o que terá passado pela cabeça desse tal Wopke Hoekstra para ter sugerido - céus, numa altura destas! - que «a União Europeia investigasse o que justifica que alguns países não tenham verbas suficientes para lidar com os impactos económicos da crise motivada pelo coronavírus». Wopke aludia obviamente a espanhóis e italianos. Imaginem a revolta que esta frase sibilina causou nos dois países a braços com milhares de mortos e infetados… e o mal estar que causou no resto da própria Europa, a viver a crise mais dramática desde a II Guerra Mundial. É claro que uma pessoa que passa o tempo a tropeçar no próprio nome (experimentem soletrar com alguma rapidez Wopke Hoekstra: é tenebroso!) merece algum desconto, mas atenção que há limites para a cabotinice. «Discurso repugnante», disse o nosso Costa. «Bravo, tinha de ser um português [a dizer isto]», escreveu-se em Espanha. «Una plaza António Costa en cada pueblo de España», sugeriu um usuário espanhol do Twitter.
Bom. Embora desta vez não tenhamos sido o alvo de Hoekstra, recordo que os Holandeses começaram a portar-se mal connosco há mais de 400 anos. Não esquecer que quando o reino de Portugal caiu no domínio dos Filipes (União Ibérica, 1580-1640), a Holanda aproveitou esse momento de fraqueza para cair sobre o nosso império ultramarino tentando substituir-se-nos como potentado maior no comércio das especiarias. Com a ajuda dos ingleses (inimigos da Espanha, logo, momentânea e convenientemente desobrigados da tal aliança…), os holandeses atacaram-nos por todo o lado em três continentes (Recife, São Tomé, Luanda, Ceilão, Cochim, etc…) numa guerra que durou 68 anos e que só terminou muito depois da Restauração (1663). A guerra resultou na perda do domínio português no Oriente e na fundação do império colonial que proporcionou à Holanda o seu século de ouro (e de rapina, como em todos os impérios).
Sei que os holandeses são em muitos aspetos um povo evoluído, civilizado e estimável. Mas acredito que comem queijo a mais. Só assim se explica que nenhum dos ministros que diz parvoíces em público se tenha lembrado que a Holanda hoje só existe assim porque no final da II Guerra Mundial (estando famélica e em ruínas após quatro anos de brutal ocupação alemã) beneficiou de uma imensa generosidade / solidariedade alheia - quer dizer, dos 13 biliões de dólares injetados pelos EUA através do Plano Marshall -, para se reerguer e reconstruir.
Na própria baliza
Do Brasil, com quem restabelecemos, graças ao mister Jorge Jesus, uma ligação muito forte e afetiva no futebol, chega-nos o exemplo de um Presidente permanentemente em contramão, apostado em marcar autogolos todos os dias. O comportamento de Jair Messias Bolsonaro nesta crise é de tal maneira errático, inconsistente e insensato que não há jornal brasileiro que não lhe caia em cima todos os dias - eu sei porque leio o que os jornalistas e principais cronistas brasileiros escrevem dele. Desde a forma desdenhosa como se referiu ao vírus - «gripezinha» - numa altura em que este já tinha ceifado milhares de vida em todo o Mundo (um insulto obsceno a todos os que perderam familiares); passando pela insistência em comparecer em manifestações públicas contra todas as determinações das autoridades sanitárias; até à estridência com que pede aos brasileiros que violem o dever cívico de confinamento e regressem ao trabalho para a economia não ir por abaixo; Bolsonaro marca golos na própria baliza a um ritmo tal que há já muita gente a desconfiar que o presidente será a primeira vítima política do corona. A única coisa que me ocorre, além de vergonha alheia, é o que o José Manuel Delgado disse nesta última Quinta da Bola: «Imagino o desespero dos brasileiros [com o Brasil de Lula & Dilma] para terem eleito um homem assim».
Como Jeroen Dijsselbloem e Wopke Hoekstra, Jair Messias Bolsonaro poderá invocar algum desconto por causa do nome e quiçá pelo facto de ter nascido no município de Glicério, distrito de Juritis (estado de São Paulo; o vice-prefeito dá pelo nome de Zé do Açúcar), onde se encontram outras localidades de sonoridade igualmente colorida como Brejo Alegre, Braúna, Penápolis, Birigui, Rubiácea e Avanhandava. Imagino que nada disto lhe tenha facilitado a infância, marcada pelo futebol logo no dia da própria nascença. Lê-se na biografia de Bolsonaro que o nome Jair foi escolhido não pelos pais mas por um vizinho, em homenagem ao médio esquerdo canarinho Jair Rosa Pinto, que fazia anos naquele dia (21 março) e jogava no Palmeiras, o clube pelo qual o pai Percy Geraldo Bolsonaro torcia apaixonadamente. Tivesse prevalecido a vontade da mãe, dona Olinda Bonturi Bolsonaro, e o presidente chamar-se-ia apenas Messias, já que ela creditou a Deus o milagre do nascimento do rapaz após uma gravidez complicada.
Eu acho que Deus não é brasileiro nem holandês e não tem as costas assim tão largas.
PS - Portugal oferece ao Mundo uma canção belíssima (Vai Ficar Tudo bem/Andrà Tutto Bene) embrulhada num videoclipe mágico que há de ficar como memória iconográfica deste tempo tão estranho. Parabéns ao cantautor Flávio Cristovám e ao realizador Pedro Varela pela inspiração. Orgulho!