Os anos bissextos
Não chores, Rochelle; não agradeças, Patrícia; não fiques triste, Telma. Não por nós, portugueses, façam-nos por vocês e só por vocês
Oprincipal desporto dos portugueses (talvez de todos os povos) é dizer mal de qualquer coisa. Do Benfica, do preço da uva mijona, do Sérgio Conceição, da temperatura da água da Costa de Caparica, dos discursos de Frederico Varandas, da vacina da Janssen ou, por exemplo, da evolução do 3x4x3 ao longo das últimas décadas em contraste com o WM de meados do século passado. Português que é português diz mal de tudo e percebe de tudo. Sobretudo de desporto e, dentro do desporto, dos árbitros. Somos os maiores especialistas em dizer mal dos árbitros. Se houvesse uma disciplina olímpica chamada tiro ao árbitro, trazíamos ouro para casa de quatro em quatro anos.
PORÉM, a meio dos anos bissextos, esquecemos os árbitros e passamos ao tiro aos olímpicos. Tudo o que seja abaixo do terceiro lugar é mau. Foi quarto? É mau, pois falhou o bronze. Bateu o recorde nacional por um minuto, mas ficou em nono lugar? Péssimo, pois não tem o diploma olímpico. Anda um atleta quatro anos seguidinhos (cinco se houver Covid) a treinar de manhã e de tarde, de manhã e de tarde, de manhã e de tarde, sem quase ninguém lhe ligar patavina e, de repente, qualquer coisa abaixo do 3.º lugar é péssimo. Julgo que se trata de frustração de cada um de nós. Frustração porque nunca fomos aos JO, frustração porque ganhamos mal, frustração porque nunca fomos a Tóquio (ou a Sidney, Atenas, Pequim, Londres ou Rio de Janeiro), frustração porque somos frustrados.
FELIZMENTE, agora já tivemos Jorge Fonseca e Patrícia Mamona. Nesta fase, quando vemos um dos nossos de medalha ao peito, transformamo-nos: choramos, vamos às redes sociais mostrar a foto que temos ao lado de um qualquer campeão e vamos tomar banho ao mesmo tempo que trauteamos o hino nacional. Daqui a uns dias, se Pedro Pablo Pichardo ganhar uma medalha no triplo salto, Portugal vai partir-se ao meio, como um barco a remos no meio do Atlântico, dividido entre os que olham para ele como um português e os que o veem como um cubano que veio para Portugal à procura apenas de dinheiro e de outra nacionalidade
Épor tudo isto que, se estivesse em Tóquio, teria dito a alguns dos nossos olímpicos: não chores por nós, portugueses, querida Rochelle, chora por ti; não agradeças aos portugueses, querida Patrícia, agradece a ti própria; não fiques triste por nós, querida Telma, fica triste apenas por ti própria. Porque nós já temos a nossa medalha de ouro de dizer mal de tudo o que mexe.