Os alemães acabaram de provar que, afinal, é possível. E porque é possível, não podemos falhar este desafio!
Vemos a Bundesliga em ação e dizemos: se eles podem, nós também. Este yes we can lusitano, contudo, certo na teoria, pode ter problemas idiossincráticos para ser levado à prática. Porque, ao contrário dos alemães, nós temos uma inestimável tentação para desvalorizar o essencial, e perdermo-nos em minudências, que uma vez hiperbolizadas conduzem, no microcosmos do futebol, à sistemática depreciação do produto, por quem mais devia ter interesse em promovê-lo.
Ao dia de hoje, o regresso da Liga a 4 de junho enfrenta duas dificuldades já assumidas publicamente por vários protagonistas. Vamos à primeira, que parece estar prestes a receber luz verde, o desejo do Marítimo de disputar os cinco jogos que tem em casa no estádio dos Barreiros. Em primeiro lugar, que fique bem claro que, havendo quem jogue em casa, os leões da Almirante Reis têm todo o direito de querer atuar no seu estádio, não são menos que ninguém. Desde que cumpram, é claro, os requisitos exigidos nesta fase tão particular que vivemos. E que requisitos são esses? Em primeiro lugar, ter um estádio que receba aprovação da Direção Geral de Saúde (DGS). Quanto a essa alínea do caderno de encargos, porque se trata de uma edificação recente, não deverão subsistir problemas. Segue-se a questão da quarentena, obrigatória para quem demanda o arquipélago da Madeira. Admitamos que até 4 de junho esse entrave possa ser levantado (e tudo aponta nesse sentido). Temos, portanto, duas de três condicionantes ultrapassadas. Falta a terceira, e aqui é que as coisas ficam mais difíceis. A DGS exige que as deslocações por via aérea sejam feitas em voos charter. Ou seja, para jogarem na Madeira, Benfica, V. Setúbal, Gil Vicente, Rio Ave e Famalicão teriam de deslocar-se em avião fretado, o mesmo acontecendo ao Marítimo em cada uma das cinco deslocações que tem de fazer ao continente.
Ao que parece, esta questão também não deverá ser impeditiva, embora deva perguntar-se quem vai arcar com os custos, que não serão parcos, de dez charters.
Pelo que julgo saber, o que está em causa, essencialmente, do ponto de vista dos maritimistas, não será tanto a questão da vantagem/desvantagem de jogar casa/fora, mas a necessidade de deslocar o plantel para o continente, afastar as famílias, e permanecer em reclusão por mais de um mês (contingência aceite pelo Santa Clara). E esse é um argumento ponderoso, já que a relevância que se está a dar ao casa/fora está a ser, creio, sobrevalorizada.
A segunda dificuldade tem a ver, precisamente, com esta malfadada questão (apesar das portas estarem fechadas) do casa/fora/onde. Sabe-se que foram vistoriados os estádios da Liga e haverá já uma primeira escolha dos recintos que poderão ser usados para cumprir os 90 jogos que faltam para concluir o campeonato de 2019/20. Os critérios da eleição foram determinados pela DGS, mas mesmo assim há quem recuse este ou aquele palco. Sinceramente, aqui chegados, não vejo nenhum sentido nestas exigências. E vou mais longe. Entendo até que, na impossibilidade de todos os clubes utilizarem os seus estádios na condição de visitados, a melhor forma seria que todos jogassem em campo neutro (embora, num contexto de porta fechada, a importância do fator/casa seja tremendamente diluída, como se constata, aliás, pelos resultados da mais recente ronda da Bundesliga).
Sei que esta é uma hipótese meramente académica, que nunca será posta em prática, mas imagine-se, por um momento, que a próxima jornada da Liga teria os seguintes palcos:
Rio Ave-Paços de Ferreira (Guimarães); Marítimo-V. Setúbal (Choupana); Benfica-Tondela (Cidade do Futebol); Portimonense-Gil Vicente (Algarve); V. Guimarães-Sporting (Barcelos); Santa-Clara-SC Braga (Luz); D. Aves-B SAD (Braga); Boavista-Moreirense (Dragão); Famalicão-FC Porto (Bessa).
Desta forma, ninguém poderia queixar-se de ficar em posição de desvantagem por não poder usar o seu próprio estádio, enquanto que outros poderiam fazê-lo.
Como se vê, há inúmeras fórmulas que podem levar ao sucesso do regresso da Liga. Mas se não houver boa-fé, tolerância e, acima de tudo, uma noção muito clara da importância que este momento assume para a indústria do futebol, dificilmente esta nau chegará a bom porto.
Já o escrevi nas páginas de A BOLA, e reitero novamente a ideia-força que deve nortear a fase que atravessamos: nenhuma solução é boa; devemos saber viver com a menos má.
Restaurantes com acrílico a separar os clientes? Take-away generalizado? Lojas com roupa experimentada e recusada, em quarentena? Praias com semáforos? Máscara nos transportes públicos? Lotação reduzida nos espetáculos? Bares e discotecas, que serão abertos um dia destes, com limitações faraónicas? Alguma destas soluções é boa? Claro que não. Mas a alternativa é muito pior. Entre dois males, escolher o mal menor, é a sina dos nossos dias, a que o desporto não pode fugir.
Ontem regressou a Nascar, já houve golfe com protagonistas de primeira, a Bundesliga arrancou com seriedade e profissionalismo, e os jogos disputados bateram recordes de audiência televisiva e geraram receitas inauditas no mundo das apostas desportivas. Parar é morrer, e isto tanto é válido para os futebolistas como para os operários que pegam a partir das oito da manhã numa fábrica perto de si. E nem sequer vou entrar em considerandos de riscos que correm uns e outros.
Posto tudo isto, entre constatações, ideias e desabafos, a bola está essencialmente do lado dos clubes, que conhecem as premissas possíveis e deverão dizer se conseguem estabelecer uma plataforma mínima de entendimento. A semana que hoje começa é essencial para definir se poderá haver recomeço da Liga a 4 de junho, e nunca como agora a responsabilidade deverá ter pesado tanto sobre os ombros dos dirigentes. Pelo que vai sendo possível perceber das movimentações noutros países, Inglaterra, Espanha e Itália (muito mais atingidas do que nós pela pandemia) estão a preparar-se para voltar em junho e por toda a Europa sente-se um movimento pró-normalização, de olhos postos na revitalização da economia. Não foi em vão que António Costa andou às compras no comércio tradicional do Chiado e Marcelo Rebelo de Sousa foi ao mercado da Ericeira fazer profissão de fé nos produtos nacionais. Oxalá o futebol não fique à margem da recuperação desejada.