O suicídio de um grande clube
1 Não é por ter perdido justamente em casa com o sensacional Famalicão que o Sporting escancarou as portas à crise. As portas já estavam escancaradas, esta derrota apenas as arrombou. Ver de fora as crises dos outros é um exercício cómodo e não muito simpático, mas às vezes é a melhor forma de ver - o que não quer dizer que seja o meu caso. Todavia, a primeira coisa que eu vejo é que a crise já vem de muto longe - e isso eu sei porque há muito tempo que, tirando raros e excepcionais anos, me habituei a nunca temer a sério o Sporting como adversário real na luta pelo título. Habituei-me a perceber que essa luta é a dois, entre Porto e Benfica, e o resto são ilusões. Este ano, com o Sporting a 7 pontos à sexta jornada e o Braga a 9, o que vai restar de ilusões até final é nada... ou o Famalicão. É muito triste para os sportinguistas que sofrem o seu clube como eu sofro o meu, e é decepcionante para o campeonato.
Continuando a ver de fora, e se me permitem, atrevo-me a apontar três razões fundamentais e profundas para a crise do Sporting. Primeira, um sentimento de superioridade, fundada em antigas glórias e presunções, que sempre impediu os seus dirigentes e adeptos de terem a humildade suficiente para fazerem o exercício de tentarem entender porque falham eles e triunfam os outros. Depois, a impaciência gerada pelos insucessos acumulados, que funciona num círculo vicioso e de que só são excepção as restantes modalidades, onde o clube continua a ser o mais eclético e o melhor de Portugal. E, terceira razão, a consequência dessa impaciência, que é o desespero, o qual conduziu ao passo fatal de eleger como presidente um vendedor de banha da cobra incendiário e incompetente, saído directamente das claques. Se todos os principais clubes portugueses estão já perigosamente capturados pelas claques - que mantêm uma relação de promiscuidade e mútuo interesse com as respectivas direcções - nenhum se deixou capturar ao ponto do Sporting com Bruno de Carvalho. Os danos - financeiros, desportivos e de cultura - e, sobretudo, a divisão que ele causou no clube, durarão anos a ser ultrapassados. Tanto mais que aqueles que o levaram ao poder, que instalaram o terror e a vergonha no clube, continuam lá, ocupando um terço das Assembleias-Gerais e um terço do estádio, de onde insultam e ameaçam presidente, treinador, jogadores. Eis como eu vejo o Sporting. Não me compete a mim sugerir uma saída para esta tragédia triste. Limito-me a dizer que o Sporting me faz lembrar o que aquele general romano dizia a César sobre os lusitanos: «Não se governam nem se deixam governar.»
2 Já tenho escrito que às vezes me custa a entender que os treinadores, lá do alto da sua sabedoria - que detestam ver questionada pelos treinadores de bancada - não sejam capazes de ver aquilo que, todavia, qualquer adepto comum vê a olho nu. E lembro-me sempre daquilo que José Couceiro me disse um dia: «Isto não é nenhuma ciência oculta.» Como é que Leonel Pontes é capaz de tirar do campo, numa altura em que estava empatado, um jogador com a categoria de Vietto, que, além do mais tinha marcado um golo excepcional e estava a ser o melhor em campo? Pese às suas contraditórias justificações e até ao seu tardio mea culpa, ele suicidou-se como treinador à vista de todos. E pese também às suas elaboradíssimas explicações (que começaram por ser interessantes e hoje já se estão a tornar enfastidiantes), como é que Bruno Lage, tendo de abrir a Champions com uma vitória caseira, deixa no banco os dois mais competentes jogadores que tinha para chegarem ao golo, Rafa e Seferovic? Os dois que, mal entraram, construíram o golo solitário e depois, frente ao Moreirense, garantiram a milagrosa reviravolta ao cair do pano? E como é que Sérgio Conceição precisou de quatro jogos para perceber (e só com a lesão dele) que Romário Baró, apesar de todo o seu entusiasmo, não passa por enquanto de um projecto de Renato Sanches, com muita correria e cabelo ao vento, mas que, recuado, só joga para o lado e para trás, e adiantado, estraga tudo por precipitação? E que, no lugar dele, Otávio é o melhor construtor de jogo ofensivo, o mestre do último passe e talvez o mais inteligente jogador da equipa?
3Ao ver Sá Pinto festejar a vitória, magnífica, em Wolverhampton, como se de conquista da própria Liga Europa se tratasse, percebia-se que ele estava a festejar mais do que uma simples vitória que, embora preciosa, tinha sido sobre um estreante europeu. Estava a festejar a sua sobrevivência. Com apenas uma vitória em seis jogos do campeonato e o antepenúltimo lugar na classificação, só as cinco vitórias seguidas na Liga Europa (das quais, quatro na fase de qualificação) o mantêm ainda no lugar, face à habitual impaciência de António Salvador. Mas se nada de essencial mudar internamente, é até ver...
4 Com a mesma surpresa que se espera do facto de, a cada quatro anos, aparecer um ano bi-sexto, também a cada quatro anos lá aparece a eterna Comissão de Apoio à Recandidatura de Pinto da Costa, eternamente presidida pelo sócio Fernando Cerqueira. E o ridículo ritual é sempre o mesmo: uma conferência de imprensa onde anunciam que vão tentar convencer Pinto da Costa a fazer o sacrifício de se candidatar para mais quatro anos. O próprio, claro, não está presente, e a seu tempo aparecerá para dizer que tal nem sequer estava nos seus planos, mas que, antes mesmo de decidir, já os sócios tinham decidido por si. E isto é encenado por todos sem se desmancharem, antes com a seriedade das coisas sérias. Este ano, se novidade houve, foi na antecipação com que a Comissão se anunciou: sete meses antes da eleição, de modo a matar à nascença e de prévia depressão, qualquer improvável candidatura alternativa. E também temos a novidade de ver três dos mais fortes candidatos à longínqua sucessão de Pinto da Costa alinharem-se agora num unânime apoio ao seu 15.º mandato, prova de que todos chegaram à conclusão de que a melhor maneira de um dia lhe poderem suceder não é apresentando-se como uma alternativa de projecto e de método de gestão, mas sim de continuidade. Ou muito me engano ou estão todos equivocados: Pinto da Costa tratará de deixar devidamente preparada, e como entender, a sua sucessão, e o mais provável é que seja por via dinástica.
Vou ser claro: detesto a ingratidão. Nem por um momento esquecerei tudo o que Pinto da Costa fez pelo meu clube do coração. Para tudo dizer em poucas palavras, tirou-o da subserviência a Lisboa e aos clubes de Lisboa e ensinou-lhe um orgulho próprio; pegou num clube de cidade e fez dele um clube do mundo, maior que Portugal. Isso é inesquecível e impagável. Mas, como alguém disse, o poder absoluto corrompe absolutamente. E tanto mais quanto tende a ser eterno e indisputado. Nenhum de nós é insubstituível, nenhum é imune à passagem do tempo, e mesmo que olhemos à volta e sinceramente acreditemos que não há ninguém melhor do que nós para nos substituir, chega uma altura em que é preciso saber sair, a bem das regras do jogo e a bem da saúde das instituições. Os grandes líderes não são os que deixam um vazio depois de se irem embora, são os que passam o testemunho deixando a casa arrumada e se retiram para o alto da montanha, de onde se vê melhor e onde os mais novos vão às vezes procurar o conselho do mais velho. Pinto da Costa está há 37 anos à frente do FC Porto. É mais tempo do que Salazar governou Portugal, Jardim governou a Madeira ou alguém governou qualquer instituição portuguesa. Com novo mandato, fará 41 anos à frente do clube: não foi uma missão, foi uma profissão - e de toda uma vida, para além ainda da idade da reforma. Por muito que lhe custe a acreditar, o FC Porto não morrerá sem ele.