O racismo no futebol e a História

OPINIÃO12.12.202003:00

Apesar da tentação imediatista e superficial dos tempos, que tudo trata em opiniões avulsas  e não raras vezes patéticas, faz-nos bem, e espero que não apenas a mim, aceitar as razões da própria História. É sempre difícil, para não dizer impossível, compreender o presente e perspetivar o futuro, sem conhecer e entender o passado. Por isso, quando falamos da «questão da moda» (parafraseando Jorge Jesus) do racismo  no futebol, é importante saber do que se fala e não nos limitarmos a reproduzir o ruído dos ignorantes.


Assim, e se não nos aventurarmos além da realidade lusófona, em especial, o Brasil e Portugal, podemos e devemos ser mais justos com a verdadeira importância que o futebol teve nas sociedades dos dois países irmãos na evolução de uma cultura antirracista, que não deixará de continuar a ter preocupantes exemplos singulares ou, até mesmo, de grupos marginais, mas que, a nosso ver, não tem, no povo, uma expressão estrutural significativa.
Guilherme Espírito Santo, são-tomense, que por razões de deslocação dos seus pais, se iniciou no futebol em Luanda, viria a ser, já com experiência de anos na equipa principal do Benfica, o primeiro negro a integrar a Seleção Nacional de futebol. Aconteceu em novembro de 1937, num célebre Portugal-Espanha, primeiro duelo ibérico que a Seleção Nacional venceu. Há 83 anos!


Apenas em novembro de 1978, ou seja, 41 anos depois da estreia de Espírito Santo, se estreou o primeiro futebolista negro na seleção inglesa: Viv Andersen, lendário jogador do Arsenal e do Manchester United que, aliás, viria a tornar-se num militante lutador antirracismo, lembrando, ainda recentemente, que «nos anos 70 os jogadores negros eram abertamente discriminados em Inglaterra».


 A influência do jogador negro na democratização racial do Brasil foi de tal forma intensa que se tornou emblemática a obra de Mário Filho, jornalista, irmão do escritor Nelson Rodrigues e o homem que deu o nome ao célebre Maracanã, e que, sobre o tema, escreveu um livro de culto, obra de dimensão universal: O negro no futebol brasileiro (1947), na sequência de estudos e análises de um dos maiores pensadores e sociólogos do Brasil, Gilberto Freyre, que desde os anos 30 vinha a refletir e publicar sobre a relação íntima entre o futebol e a evolução cultural da sociedade brasileira.


Mário Filho chegou a escrever: «Sem o futebol, o cangaceirismo teria provavelmente evoluído para um gangsterismo urbano, com S. Paulo transformada numa sub-Chicago de Al Capones italo-brasileiros.»


Também em Portugal a presença de jogadores negros nas equipas principais do futebol português e na Seleção Nacional se traduziu por uma inteira aceitação de uma cultura aberta e plurirracial do nosso povo. Jogadores como David Júlio, Hilário, Jordão, Dinis ou Salif Keita, no Sporting; Miguel Arcanjo, Jaburu, Juary, ou Danilo, no FC Porto; Espírito Santo, Coluna, Eusébio ou Luisão, no Benfica, não apenas conquistaram estatuto de ídolos, como promoveram a democracia racial como um  hábito social saudável.


Nota especial, evidentemente, para Pelé, no Brasil, e Eusébio, em Portugal. Ambos foram determinantes na valorização social do homem negro, a pontos de se tornarem nos mais importantes embaixadores dos seus países, consagrados e admirados em todo o mundo. A influência de Pelé, apenas com 17 anos, na conquista do Mundial da Suécia (1958) ou a de Eusébio no sucesso português, no Mundial de 1966, consolidou o sentimento da tal democracia racial que o futebol promoveu como ninguém e que me parece estruturante nas sociedades luso-brasileiras.