O nosso São Bernardo

OPINIÃO02.12.202205:30

Dissertação sobre o mais prodigioso jogador português desta geração

H Á muito que vemos Bernardo Silva como um talento verdadeiramente excecional. Não é de agora nem estou, evidentemente, a descobrir a pólvora ao confessar não ter hoje, mais do que nunca, qualquer dúvida em sublinhar ter-se tornado Bernardo Silva o Messi português. A qualidade técnica, a inteligência dos movimentos, a compreensão do jogo, a definição das estratégias a seguir em cada momento, a leitura do que faz e do que não faz o adversário e o que ele faz jogar a própria equipa fazem de Bernardo Silva, realmente, o maior prodígio da atual geração de futebolistas portugueses (daí a comparação com Messi, como creio que se compreenderá), e, naturalmente, da Seleção que representa o País no Mundial que não deveria ter acontecido, mas está a acontecer no Catar.
Com todo o respeito pela grandeza de Cristiano Ronaldo e pela fogosidade brilhante de Bruno Fernandes, que está, na verdade, a realizar uma competição bem acima, confesso igualmente, do que eu esperava, com todo o respeito, ainda, pela alta qualidade individual de muitos dos outros jogadores escolhidos pelo selecionador, creio que ficará sempre a equipa a dever a Bernardo Silva o que de mais brilhante a equipa vai, apesar de tudo, conseguindo, nos poucos momentos em que a equipa consegue realmente ser brilhante.
Espero que Bernardo Silva não me leve a mal pelo título desta crónica, que faz lembrar a belíssima raça de cães são-bernardo, ao mesmo tempo tão robustos e tão doces. Bernardo Silva é um ser humano que nos parece verdadeiramente bom, inteligente e culto. Sendo franzino, é genuinamente tão dedicado que se torna delicadamente robusto. E não sei se concordam, mas tem um olhar autenticamente doce. Pode parecer, admito-o sem reservas, uma disparatada comparação, mas vejamos como se definem, habitualmente, os cães de raça são-bernardo: «São de natureza gentil e bem-humorada, leais à sua família e por ela nutrem um enorme instinto protetor. Ótimo cão de guarda e também de companhia, de disposição doce e meiga, dá-se muito bem com crianças e com outros animais.»
O São Bernardo da Seleção portuguesa é igualmente tão gentil e de tão enorme instinto protetor, que desliza no relvado com tal paixão pelo jogo, pela equipa e pelos companheiros, que chega a parecer, na verdade, dispor-se a dar a vida por eles.
Inspira, ainda, tal confiança e segurança que a equipa sabe muito bem que ao dar-lhe a bola ele a guardará como ninguém.
Acredito, sinceramente, que Bernardo Silva não vai levar a mal o que aqui deixo escrito.
Se é verdade que toda a gente gostaria de ter um são-bernardo (acredito nisso, e eu, desde miúdo, tenho esse sonho infelizmente nunca concretizado), creio que não será exagero reconhecer que toda a gente gostaria, igualmente, de ter o Bernardo Silva. E isso basta-me para o prazer da comparação.

A INDA agora, no jogo que nos qualificou para os oitavos de final, frente aos poderosos, intensos e agressivos uruguaios, o melhor jogador português em campo foi, para mim, Bernardo Silva, a despeito de ter sido Bruno Fernandes justamente distinguido como homem do jogo, pelos dois golos que fez, e também pelo muito (e bem, com categoria) que dinamizou o futebol de Portugal.
Mas Bernardo Silva foi, ao mesmo tempo, o eixo do carrossel e a energia que o fez mover; foi o encenador e, ao mesmo tempo, o principal protagonista; foi o maestro da orquestra e, ao mesmo tempo, o primeiro violino. Bernardo Silva sabe tanto do jogo que lhe marca o ritmo com o rigor de um professor de matemática e a precisão de um professor de música.
Infelizmente, o jogo da Seleção continua tão descompensado que muito continua a precisar de Bernardo Silva para o equilibrar mais do que para o desequilibrar. E é por isso que o vemos, por vezes, mais atrás do que todos, certamente, gostaríamos, e muito menos à frente do que a equipa precisaria. É o preço que a equipa e Bernardo pagam por ser Bernardo tão inteligente e diligente e a equipa tão pouco corajosa a atacar.
Frente ao Uruguai, como já tinha, aliás, sucedido com o Gana, Portugal já mudou, é verdade, um pouco o paradigma do futebol que habitou os portugueses nos últimos anos. Deixou de ser equipa apenas à espera de ver o que o jogo lhe dá, passou a ser, honra lhe seja feita (por mérito de jogadores e também, acredito, do selecionador), equipa a querer mandar no jogo, a querer dominá-lo, a querer ter a bola para impedir o adversário de nos baralhar. Uma coisa, porém, é querê-lo, outra é sabê-lo. Portugal quer mas ainda não sabe. Ou, se sabe, ainda arrisca pouco.
É frequente, e foi-o frente ao Gana e diante do Uruguai, ver-se Portugal a jogar de pé para pé, como diz a expressão tão cara aos treinadores portugueses de uma geração mais velha, e a não atacar, verdadeiramente, o espaço, ou a profundidade, como diz a expressão, agora, tão cara aos treinadores de gerações mais recentes. A inclusão de William, primeiro, no lugar do lesionado Otávio (jogo com o Gana) e, depois, a titular no onze seguinte (com o Uruguai) dá equilíbrio defensivo à equipa, não se nega, mas retira-lhe capacidade de se ligar com mais versatilidade ao desenho ofensivo.
Nunca deixei de defender William Carvalho e cheguei a escrever, aliás, que, comigo, William estaria sempre entre os cavaleiros portugueses numa qualquer grande competição. Mas tê-lo no lote dos eleitos não quer dizer que defenda a sua inclusão num onze que já tem um médio defensivo como Rúben Neves.
Note-se, porém: William entrou muito bem no jogo com o Gana (impecável em tudo o que fez) e ninguém pode dizer que tenha estado menos bem frente ao Uruguai. A questão não é tanto, pois, a de se saber se deve ou não William jogar, mas sim a de se saber se esta Seleção deve ter, no mesmo onze, Rúben Neves e William Carvalho, e mesmo assim pedir a Bernardo Silva que seja a balança da equipa, o peso e a medida, a ampulheta do tempo e a régua e o esquadro da geometria em campo. E que morra pela equipa como morreu frente ao Uruguai. Isso é que não faz muito sentido. Quantas vezes vimos a linha mais defensiva uruguaia confortavelmente tranquila no jogo por não ser pressionada, nem atacada, nem apertada pelos mais tecnicistas e criativos jogadores portugueses? Vezes de mais.
Já sei que se dirá: mas ganhámos, não ganhámos? Sim, ganhámos. Mas continuarmos a querer ver o jogo apenas pelo objetivo do resultado, então, meus caros, estaremos a resumir tudo à robotização do jogo. Defenda-se então com um autocarro e contra-ataque-se com dois ou três para tentar chegar ao golo. Porque um golo bastará sempre para se vencer desde que não se sofra nenhum. Nem La Palice diria melhor…

P OIS o jogo de futebol deve perseguir, naturalmente, o objetivo do resultado mas deve perseguir também o objetivo da qualidade do jogo, do espetáculo, do virtuosismo, da coragem, da ousadia, do espírito que melhor lhe marca a essência, que é o ataque, e a matriz, que é o golo.
E é por isso que vendo a qualidade e o talento de jogadores como Bernardo Silva, e muitos outros, evidentemente, nos sentimos no direito de exigir mais e melhor futebol à Seleção portuguesa, sem prejuízo de a felicitarmos pela qualificação para os oitavos de final e, como todos esperamos, pela obtenção do primeiro lugar do grupo, vencendo esta tarde a Coreia do Sul, de Paulo Bento, e vingando, também, a derrota e eliminação de há 20 anos, como vingámos (passe a expressão menos ortodoxa mas aplicável na linguagem desportiva) frente aos uruguaios o que os uruguaios nos fizeram há quatro anos.

H ONRADOS, igualmente, por vermos a Seleção do engenheiro Fernando Santos desfilar na passadeira do Mundial jogadores da dimensão de Cristiano Ronaldo e Pepe (sim, Pepe, que regressou ao onze e fez exibição de classe), a qualidade de um Diogo Costa (está desculpado, Diogo, e conte estar, nos próximos 15 anos, na elite dos melhores do mundo), de um Bruno, de um Félix ou de um Leão, o meu destaque não pode deixar de ir para o talento sublime, não me canso de o reconhecer, de um Bernardo Silva que exemplifica, em cada jogo, todas as verdadeiras razões pelas quais um treinador como Pep Guardiola e um clube poderoso como o Manchester City farão tudo, mas tudo, para o conservar, mesmo sentindo, como eu sinto, que faltará a Bernardo, no milionário City, talvez o peso histórico, o simbolismo popular, a paixão e a cultura de um outro clube mais parecido com o que o fez crescer, o seu (dele) Benfica para sempre!