O mundo à parte de Sérgio Conceição
VOU ser muito claro porque já começo a ficar farto e a ficar velho para as meias-tintas de que esta gente tanto gosta: o futebol português é um território de excepção onde não entram nem as regras do Estado de direito, nem as regras de conduta de uma sociedade democrática, aberta e transparente. Neste seu particular território, os reis, reizinhos, condes, barões e baronetes, os que ali mandam e ditam as regras, comportam-se como se não devessem nada a ninguém, como se fossem intocáveis, infalíveis e insindicáveis. Dirigentes e treinadores (estes com algumas notáveis excepções, como é o caso de Bruno Lage), embora estejam à frente ou ao serviço de Sociedades Anónimas e clubes de sócios que lhes pagam o ordenado, agem como se fossem eles os verdadeiros donos do clube e fossem os seus interesses próprios aqueles que primeiro que tudo devem ser levados em conta. Em lugar de informar, mandam recados através dos seus cartilheiros e mensageiros na imprensa amiga; em lugar de explicar, insinuam; em lugar de assumir responsabilidades pelos falhanços, desculpam-se com os outros ou com conspirações ocultas; e em lugar de falarem quando devem ou quando deixam no ar insinuações sem destinatário certo (como fez Sérgio Conceição), remetem-se a um silêncio conveniente, como se aos accionistas, aos sócios, aos adeptos, nem uma palavra mais fosse devida.
Esta gente não está habituada a viver em democracia. Fossem eles políticos e já teriam sido todos muito justamente cilindrados pela nossa imprensa. Não poderiam fugir dos jornalistas quando querem ou enfrentá-los apenas quando lhes dá jeito e em tom tantas vezes arrogante e mal-educado. Teriam de encaixar perguntas que nem esperam ver ser-lhes colocadas, sem um assessor de imprensa ao lado a mandar calar os jornalistas incómodos ou sem poderem sair desabridamente das conferências de imprensa quando não gostam das perguntas. Não, mas eles têm um estatuto à parte, são profissionais de excepção, cidadãos intocáveis, porque, infelizmente, a paixão irracional de tantos pelo seu clube leva-os a perdoar-lhes coisas que o cidadão comum não perdoa, por exemplo, a qualquer político. Por isso, Mário Centeno não ganha nem mais um euro de prémio por ter conseguido uma proeza ímpar em 47 anos, a de ter fechado um ano sem deficit nas contas públicas, mas os administradores da SAD do meu clube, além dos seus generosos vencimentos, ganharam também generosos prémios de desempenho por terem levado a sociedade à beira da falência; por isso, por melhor que tenha sido o desempenho de um qualquer ministro no seu sector, ele vai acabar o ano tendo ganho 24 vezes menos que o treinador do FC Porto, mesmo tendo este perdido o campeonato, a entrada na Champions e a Taça da Liga, e só chegando ao Jamor porque, ao longo do caminho, teve o percurso mais fácil que eu me lembro de o FC Porto alguma vez ter tido, só enfrentando um primodivisionário uma vez e no Dragão - o modesto Santa Clara, ultrapassado com imenso sofrimento e um golo irregular.
Vejamos, então, a defesa de Sérgio Conceição, depois de mais um falhanço na malfadada Taça da Liga. Que o FC Porto teve pouca sorte nos dois jogos contra o Braga, sobretudo no primeiro. Teve, sim. Azar, mas também erros próprios. De qualquer maneira, há uma diferença entre os dois clubes - ainda há uma diferença entre uma equipa que saiu a ganhar dinheiro do mercado de Verão e outra que investiu nele 60 milhões em reforços. Em dois jogos consecutivos contra o Braga não é admissível que o FC Porto não tenha jogado o necessário para não ficar à mercê da sorte ou do azar. Disse depois que, no primeiro ano, foi campeão sem dinheiro nem reforços. É verdade, sim, e eu, que detesto a ingratidão e a falta de memória, não o esqueço. Mas, se não esqueço isso, não esqueço também que ele deve ao FC Porto a possibilidade de ter obtido, não o seu primeiro triunfo, mas o seu primeiro sucesso real como treinador. No segundo ano, disse, foi vítima da falta de verdade desportiva. Subscrevo, outra vez. E, enfim, este ano é a tal misteriosa falta de união no clube ou na equipa que está a minar os seus esforços. Mas, uma vez que se ficou pela insinuação, não nos achando dignos de uma explicação cabal e capaz, eu sinto-me no direito de pensar que tal não passa de uma desculpa de mau perdedor. De facto, com união ou sem ela, há coisas que me saltam à vista como sendo da exclusiva responsabilidade do treinador e para as quais muito gostaria de lhe ouvir uma resposta. Por ordem cronológica desde a pré-época, ou antes até, eis as 20 perguntas para as quais eu gostaria de ouvir uma explicação de Sérgio Conceição (SC):
1. De quem é a responsabilidade pelos sucessivos falhanços (quatro ou cinco) na aquisição de um lateral-direito que se possa assumir como titular?
2. Mesmo assim, tendo em conta que tem ao seu dispor um dos melhores alas-direitos de ataque do nosso campeonato - Corona - e que tanto Mbemba como Manafá fazem bem ou melhor do que ele o lugar de defesa-direito, como se justifica que SC continue a sacrificar Corona lá atrás, onde se limita a atrasar bolas para o guarda-redes, em vez de o ter como abre-latas na frente? Não viu o efeito imediato produzido no jogo da equipa quando o trouxe de trás para a frente, contra o V. Guimarães?
3. É a SAD que o manda pôr a jogar Danilo, quando ele atravessa um prolongado momento de absoluta baixa de forma altamente comprometedor para a equipa (em ambos os jogos contra o Braga, precisou apenas de 4 minutos para oferecer um golo: o primeiro, entrou mesmo; o segundo, acabou na barra)?
4. Porque razão manteve Loum, comprado bem caro ao SC Braga, oito meses sem jogar, e, depois de dois jogos em que teve um desempenho muito acima de Danilo, o fez desaparecer ?
5. Não percebeu, na pré-época, que o sector essencial para reforçar era o meio-campo, em especial o meio-campo criativo?
6. O fiasco Uribe foi escolha sua?
7. Entre Uribe e Luis Díaz, não conseguiu ainda perceber que é o último que se pode tornar um bom jogador, se lhe der confiança e oportunidades?
8. Será SC o único que continua a acreditar naquela fábula de que Sérgio Oliveira ainda há-de renascer, à quarta ou quinta oportunidade, e revelar-se um bom rematador, um bom cobrador de bolas paradas e um bom jogador?
9. Que explicação tem para o facto de nem um só jogador da equipa que foi campeã europeia de sub-19 na época passada ter justificado um lugar de titular na equipa principal?
10. Deu o seu aval à venda, a preço de amigo, de Galeno ao Braga, mesmo depois de saber que a equipa ia perder Brahimi, um dos seus raros flanqueadores?
11. Porque perde a equipa tanto tempo a trocar a bola atrás entre o guarda-redes e os defesas, muitas vezes terminando com um passe directamente para o ataque, como se o meio-campo não importasse?
12. Porque continua a insistir, como principal jogada de ataque, na bola em profundidade para a corrida de Marega, quando é visível que ele já não tem nem a mesma velocidade nem a mesma capacidade de choque que tinha há dois anos?
13. E porque insiste em Marega a ponta-de-lança quando ele só é verdadeiramente útil descaído sobre o flanco ou a aparecer no meio vindo do flanco?
14. Porque quis tanto ter Zé Luís e agora o encostou à bancada? É estratégia da SAD para o desvalorizar e vender barato já até final do mês?
15. Porque tem a equipa tanta posse de bola e tanta dificuldade em criar jogadas de golo?
16. Porque não aprenderam a marcar penalties em três anos e porque não aprendeu o treinador quem são os raros que sabem mesmo cobrá-los?
17. O que falhou numa pré-epoca, em que aparentemente teve todas as condições, para que o FC Porto aparecesse a jogar sem a menor estratégia de jogo, como se viu logo de entrada contra o Krasnodar ou o Gil Vicente?
18. Aqui chegados, após uma volta do campeonato, consegue dizer qual é o seu onze ideal?
19. E a pergunta principal: que explicação pode dar para o facto de que, desde o início - e com excepção dos jogos contra o Benfica e o Famalicão - o futebol jogado pela equipa não ter evoluído rigorosamente nada, antes pelo contrário?
20. Por fim: concorda que nós, os que amamos este grande clube e sofremos por ele, temos o direito de colocar perguntas e obter respostas, ou acha que a nossa função é só pagar, ver e calar?
P.S. - Nas televisões, deu-se muita importância ao facto de 40 adeptos portistas terem recebido a equipa com apupos e insultos no Dragão, no regresso de Braga. Concordo que é preocupante: preocupante que tenham sido só 40. Se tivéssemos ganho, seria preocupante que só lá estivessem 40 à espera da equipa. Mas, tendo perdido, só 40 é igualmente preocupante. Como disse Rodolfo, no tempo dele, teriam sido pelo menos 400, indignados pela derrota. Preocupante é assim o sinal de que nos vamos habituando e conformando com as derrotas. Como os sportinguistas.